13 de setembro de 2010

À mão de ler (82)

«Eu estava com um humor totalmente radiante, sentia-me saudável e suficientemente corajoso para o que quer que fosse. Se ao menos tivesse uma vela, conseguiria acabar o meu artigo. Fui andando e baloiçando na mão a minha nova chave de casa, cantarolei e assobiei e dei voltas à cabeça sobre como arranjar uma vela. Mas não havia qualquer outra saída senão trazer para a rua os meus utensílios de escrita e sentar-me debaixo de um candeeiro. Abri o portão e subi para ir buscar os meus papéis.
Quando voltei a descer, deixei que o portão se fechasse por fora e fui colocar-me por debaixo da luz do candeeiro. Havia um silêncio total, apenas se ouviam os passos pesados e ruidosos de um polícia, mais abaixo, na transversal e o ladrar de um cão, ao longe, na direcção de St. Hanshaugen. Não havia nada que me perturbasse, puxei a gola da sobrecasaca para cima das orelhas e comecei a coordenar as ideias com todas as forças. Ajudar-me-ia grandemente se tivesse a sorte de conseguir terminar aquele artigo. Tinha chegado a uma parte bastante trabalhosa, em que queria tentar encontrar uma ligação totalmente ignorada para algo novo, depois uma preparação moderada e deslizante do final, uma longa resmunguice que, por fim, se intensificaria gradualmente para culminar num abrupto climax, chocante como um tiro ou como o estrondo de uma montanha a rachar-se.»
[Knut Hamsun, Fome; trad. de Liliete Martins, Cavalo de Ferro, Outubro 2008;

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