«As cartas que realmente me animam durante alguns dias são os "isótopos" que chegam por pombo-correio – de ranzinzas, excêntricos, chalados e malucos puros e simples. Que esplêndido discernimento teríamos sobre a vida de um autor se tais missivas fossem coligidas e publicadas de vez em quando! Sempre que um autor célebre morre, há uma corrida desenfreada para desenterrar a correspondência trocada entre ele e outras celebridades de nomeada mundial. Algumas vezes isso dá boa leitura, mas é frequente não dar. Como devoto de semanários literários franceses, dou muitas mais vezes comigo a ler excertos de correspondência entre homens como Valéry e Gide, por exemplo, e a perguntar-me, enquanto o faço, porque será que estou com tanto sono. Aqueles que classifico de modo geral como "chalados" não são de modo algum doidos, mas sim excêntricos, depravados, perversos e, tratando-se de solipsistas genuínos, todos eles andam, evidentemente, de candeias às avessas com o mundo. Acho-os mais divertidos quando lamuriam pateticamente sobre a crueldade do destino. Isto pode parecer maldoso, mas a verdade é que não há nada mais hilariante de ler do que os aborrecimentos de uma pessoa que de algum modo está sempre cheia deles. O que parece montanhas a estes tipos são sempre montículos para nós. Um homem que é capaz de discorrer sobre a tragédia da radícula de uma unha, que consegue dissertar a esse respeito durante cinco ou seis páginas, é um comediante caído dos céus. Ou um homem que é capaz de desmembrar o nosso trabalho com martelo e pinça, de o analisar até o reduzir a nada e entregar-nos os membros desaparecidos num bidé antiquado que normalmente usa para servir esparguete.»
[Henry Miller, Big Sur e As Laranjas de Jerónimo Bosch; trad. Fernanda Pinto Rodrigues, Lisboa, 2000, Livros do Brasil;
2 comentários:
Texto interessante. Mas que dizer do "bidé antiquado que normalmente usa para servir esparguete"? Bem, que me pôs a rir, lá isso pôs!
Não se surpreenda. Recordo perfeitamente, o bacalhau cozido com batatas e «couves de Viseu»*, servido em bidés e ceiras durante as tibornadas nos lagares da minha infância, oferecidas por quem fazia azeite (do dele). O melhor, o mais saboroso, era mergulhar a broa e o pão do dia para rapar os restos a escorrer azeite quente ;)
* Couves gamadas pela calada da noite ao anfitrião, que as gabava deliciado e respondiam-lhe que «eram de Viseu», quando perguntava a origem. Creio que a pergunta já fazia parte da Festa :)
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