18 de novembro de 2010

«É bom trabalhar nas Obras» (50)


«Saíram de automóvel, à meia-noite, para Tapalqué, por uma estrada lateral que atravessava a extremidade do distrito. Iam pelo meio do campo, evitando as cercas de arame e os animais parados. A Lua escondia-se por vezes, e Croce usava o farolim, que estava de lado, um holofote forte com um manípulo que se podia mover com a mão. De repente, viram uma lebre, paralisada de terror, branca, quieta, no círculo iluminado, como uma aparição no meio da escuridão, sob o feixe de luz, um alvo na noite* que, de repente, ficou para trás. Andaram várias horas, sacudidos pelos buracos do caminho, a olharem o fio prateado das cercas de arame sob o céu estrelado. Por fim, ao saírem para uma clareira arborizada, viram ao fundo, longe, o brilho da janela iluminada de um rancho. Quando chegaram ao trilho e se dirigiram para o rancho, já começava a clarear no horizonte e ganhou tudo uma cor rosada. Renzi desceu e abriu a cancela e o automóvel entrou por um caminho entre o capim. Na porta, debaixo do telheiro, um paisano tomava mate sentado num banquinho. Um polícia de guarda dormitava junto de uma árvore. No largo dos cavalos, ao lado, estava o alazão, tapado com uma manta escocesa, a pata esquerda ligada. O paisano era o tratador do cavalo, um ex-domador, de nome Huergo ou Uergo, Hilario Huergo. Era um gaúcho escuro, alto e magro que não parava de fumar e os olhou quando chegaram.
- Que manda, don Croce.
- Viva, Hilario – disse Croce. – O que foi que se passou?
- Uma desgraça. – Fumava. – Pediu-me que viesse – disse. – Quando cheguei, já o tinha feito. – Fumava. – Sim – disse, pensativo. – Na religião dele é permitido.
- Não está lá que é permitido matar – disse Croce.
- Tenha respeito por ele, comissário. Era uma boa pessoa. Teve essa desgraça. Ninguém tem compaixão com os culpados – sentenciou, depois.
Croce andou a dar umas voltas porque, como sempre, postergava o momento de entrar e ver o morto. Assomou-se e voltou a sair.
- Disse-lhe alguma coisa sobre o ianque – disse Croce.
- Deixou uma carta, não a abri, está onde a pôs, na janela.
* Dez anos depois dos factos registados nesta crónica, nas vésperas da guerra das Maldivas, Renzi leu no The Guardian que os soldados ingleses estavam equipados com óculos que lhes permitiam ver na escuridão e disparar sobre um alvo nocturno e deu-se conta de que a guerra estava perdida antes de começar e lembrou-se dessa noite e da lebre paralisada perante a luz do farolim do automóvel de Croce.
[Ricardo Piglia, Alvo Nocturno; traduzido e em revisão para a Teorema]

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