2 de novembro de 2010

À mão de ler (102)

«Quando ele ia todos os dias encontrar-se com a Edite, ouvia os circunstantes exprimirem peremptoriamente a sua grande preocupação: “Ele fá-la infeliz.” É provável que este rumor tivesse chegado, também, aos ouvidos dela. E ela ficava muito, mesmo muito pensativa. De uma das vezes, ficara mesmo branca como a cal. É até possível que tenha desejado a própria morte, e agora, no entanto, passeia-se, de carinha rosada e toda ela num mar de rosas, de braço dado com aquele medíocre. Hoje o salteador até está pálido de tanto escrever; nem podem fazer uma ideia da forma como ele me tem galhardamente ajudado na feitura deste livro. Ao protector da Edite, esse medíocre que, aliás, parecia ser um homem bastante robusto, dirigiu-se um dia o salteador a propósito de um assunto qualquer e aproveitou a ocasião para lhe declarar que estava a ajudar um escritor e escrever um romance, romance, aliás, que era pouco extenso mas pujante de cultura e de conteúdo e dizia fundamentalmente respeito à Edite, sendo ela a personagem principal do referido romance, curto mas riquíssimo de conteúdo. O salteador sorria ao dizer isto e o amigo da Edite, esforçando-se por conter a raiva que sentia, começou literalmente a tremer, pelo que só a custo conseguiu exclamar: “Seu biltre!” “Para ser rigoroso”, retorquiu o salteador, “biltres somos, de facto, todos os que escrevemos romances e novelas, e somo-lo na medida em que damos provas de uma respeitosa falta de respeito, de uma branda audácia, de um temor destemido, de um contentamento doloroso e de uma dor cheia de contentamento doloroso e de uma dor cheia de contentamento, quando premimos o gatilho da nossa arma, digamos antes, quando fazemos pontaria aos modelos que tanto estimamos. É isso que acontece com a literatura.»
[Robert Walser, O Salteador; trad. Leopoldina Almeida, Relógio d’Água, Janeiro de 2003;

2 comentários:

MCS disse...

Pronto, estou a ver que este "Salteador" já me vai à carteira. Parece-me que lá terei que comprar isto.

fallorca disse...

Franqueie-lha o mais possível, só tem a ganhar com isso.
Ando com «O Passeio» (edição da Granito, bem traduzido, mas com os cadernos a desfazerem-se, uma vergonha!)