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Mas eu possuía ainda uma felicidade só minha, durante a noite, tremendo de frio no canapé de riscas vermelhas e amarelas, ou quando trepava ao monte de sacos de café para disparar sobre o acampamento de Boris. Excitava-me a proximidade do cinema, apesar de fechado, com os seus cartazes abandonados à entrada; o brilho da máquina de café palpitava dentro de mim como um nó de lágrimas, assim como o vapor angustiante do café brasileiro; depois foi a vez de ver a palavra “cólera”, que o avô agitou, ameaçadora, por cima da sopa, fazer voltar ao meu espírito o terror bíblico dos flagelos que eu conhecera através das histórias do ano anterior sobre o deserto banhado pelo meu pranto das babilónias destruídas.
Na cozinha, durante a noite, ouvia os estrondos do bombardeamento. “O que é um tiro de canhão?”, perguntava a mim mesmo. E parecia-me que devia sair deles um cavalo depois da explosão, um cavalo negro e sem cabeça, como o da minha outra infância de Siracusa, que saía das badaladas da meia-noite e galopava, galopava, na calçada da cidade com um espectro enorme na garupa. E de manhã, ao ir buscar uma tigela de leite, com as mãos nas algibeiras, eu via restos de ferro fumegando no ar silencioso, que me pareciam caçarolas ou frigideiras esquecidas ao lume, de passeio a passeio, depois da orgia de um povo em fuga.»
[Elio Vittorini, Pequenos Burgueses; trad. Maria Manuela Gonçalves, Os Livros das Três Abelhas, Julho 1962]
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