7 de junho de 2013

Nem sempre a lápis (374)

Artesanato
(1966/70)
 
Quando o aquário se abre, sinto as mãos apodrecidas nos bolsos. Pedras quentes com que enterneço os amigos e a breve magia do fogo.
As aves voavam baixo, incendiadas. Aves que tinham asas para saudar as pessoas convidadas.
Atravessavam as pontes,
poisavam levemente na cúpula das torres,
mordiam os dentes com a obsessão desconforme da tristeza.
Os peixes morreram.
Os caixotes estavam pejados de escamas para entreter vagabundos.
No parque, passeavam crianças louras com os bibes rasgados, os olhos estoirados de infância.
Eram crianças habitadas, crianças que destruíam cérebros com máquinas descuidadas e ficavam sorridentes com as imagens.
Loucas crianças adormecidas que passeiam pelas cidades medonhas.
Crianças absolutas,
podres.

Uma noite – digamos, uma noite – os milagres vinham cambalear para a rua.
Escondiam-se atrás dos prédios receados. Empestavam o ar de odor a morticínio – quimera solta – e percorriam as ruas caladas com os véus esvoaçando.
Tocavam os bancos vazios, ensarilhavam as colinas recortadas, escreviam libertações nas paredes dos bordéis, fechavam as portas das prisões, incendiavam as árvores calcinadas, afogavam as fontes bombardeadas, cantavam canções emudecidas, abriam os portões do Inferno, cuspiam nas labaredas do Paraíso, roubavam flores dos jardins, etc., etc.
angústia, ansiedade, pavor.

Quando se abre o aquário,
quando se fecha o céu,
as pessoas constróem os dias na cozinha, adicionam-lhe a pureza da sua invenção.
Sorriem para os amigos, convidam-nos para a mesa e dizem belas palavras onde começa o Pânico.
Depois matam-nos com a velocidade dos gestos.
 
[in, Alcateia; Hugin, 1999]

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