20 de agosto de 2010

À mão de ler (74)


«Fragmento sem data.
Ideia para uma história.
Um homem, um escritor, escreve um diário. Anota nele pensamentos, ideias, acontecimentos significativos.
As coisas começam a correr-lhe mal na vida. "Dia mau", regista ele no diário, sem pormenorizar. "Dia mau", escreve, dia após dia.
Cansado de chamar dias maus a todos os dias, decide assinalar simplesmente os dias maus com um asterisco, como algumas pessoas (mulheres) assinalam com uma cruz vermelha os dias em que terão a menstruação, ou como outras pessoas (homens, mulherengos) marcam com um X os dias em que averbaram um êxito.
Os dias maus acumulam-se; os asteriscos multiplicam-se como uma praga de moscas.
A poesia, se ele fosse capaz de escrever poesia, poderia levá-lo à raiz do seu mal-estar que floresce sob a forma de asteriscos. Mas a veia da poesia parece ter secado nele.
Há a prosa à qual recorrer. Em teoria a prosa pode conseguir o mesmo efeito purificador que a poesia. Mas ele tem as suas dúvidas. Sabe por experiência própria que a prosa exige mais palavras que a poesia. De nada vale enveredar pela prosa se a pessoa não confia que estará viva no dia seguinte para prosseguir a tarefa.
Considera ideias como estas - a ideia da poesia, a ideia da prosa - como uma maneira de não escrever.
No verso das páginas do diário faz listas. Uma delas intitula-se Maneiras de Pôr Termo à Vida. Na coluna da esquerda enumera Métodos e na coluna da direita Inconvenientes.
Das maneiras de pôr termo à vida que enumerou, a sua favorita, depois de pensar maduramente, é o afogamento, ou seja, ir à noite até Fish Hoek, estacionar perto do extremo deserto da praia, despir-se no carro, vestir calção de banho (porquê?), atravessar a areia e entrar na água (terá de ser uma noite de luar), arrostar contra as ondas, dar braçadas na escuridão, nadar até ao limite da resistência física e depois deixar que o destino siga o seu curso.
Toda a sua relação com o mundo parece processar-se através de uma membrana. Como a membrana lá está, a fertilização não se dará. É uma metáfora interessante, cheia de potencial, mas, tanto quanto vê, não o leva a lado nenhum.»
[J. M. Coetzee, Verão; trad. J. Teixeira de Aguilar, D. Quixote, Fevereiro 2010]

5 comentários:

fernando machado silva disse...

eu que tenho um preconceito em relação aos nobel (conta-se por uma mão os que li e o saramago não está lá), qualquer dia leio o coetzee.

fallorca disse...

É curioso, como as pessoas são; Coetzee não me atraiu por ser Nobel, mas por tê-lo folheado e começado a lê-lo pelo último título; por outro lado, tenho um título de culto, «O Ano da Morte de Ricardo Reis», quando Saramago ainda não estava entre nobeis

Cristina Torrão disse...

Eu também estou a ver que tenho que ler Coetzee...

noni disse...

«...talvez assim assome 1poesia perdida,embora eu viva como 1poema»

Cristina Gomes da Silva disse...

Bom dia! só para sublinhar: tenho um título de culto, «O Ano da Morte de Ricardo Reis», quando Saramago ainda não estava entre nobeis. Abraço