3 de agosto de 2010

Nem sempre a lápis (68)

Tenho andado tão envolvido com a tradução, a descoberta de Manguel, o reencontro com Bartleby & Companhia, a indecisão entre o novo livro de Coetzee e a reedição de O Complexo de Portnoy, com vantagem para o primeiro, à medida que leio um período ou um parágrafo ao acaso na livraria; a prospectar o Ulisses e o Google – exigências da tiragem diária do blogue –; que, nas últimas semanas, a avareza do diálogo, da comunicação, desvalorizou-se aos bons-dias à porteira, se nos cruzamos; à rotativa questão, O que é a sopa?, enquanto tomo o pequeno-almoço confirmado pelo habitual bom-dia, liquidada a despesa de cor com boa-tarde, nem sempre me lembro de um até logo; à pergunta (desnecessária) se os trocos dão jeito, na frutaria; ao silencioso alheamento da pausa no trabalho, ao fim do dia e nem sempre com o lápis à mão. Vozes amigas e bem intencionadas, mandam sms ou e-mails a perguntar, «O que é feito?», a dizer por onde andam para que apareça; um pedido no blogue da Trama para que se espere até Setembro (outra vez, dois anos depois) fazem-me pegar no telefone, sabendo que corro o risco de ficar sem Net. Vá-se lá entender porquê; é mais simples e, se calhar, mais acertado aceitá-lo como característica do modem para descansar. Exposta a aparente realidade dos factos, concedo que o cenário assume conotações serôdias de hikikomori (coladas a cuspo), dividido entre a razoável noção da falta de arejar e a desmotivadora noção de sufoco que me espera. Consumida e demolida a veleidade das relações, é possível que a distância que nos separa da parafernália nipónica, tenha reservado para os solitários confinados em casa própria, a necessidade de esperar pela velhice e a vida a sós para se perderem, adeptos compulsivos da atitude electrónica em vigor ou da clássica despedida à francesa, na realidade quotidiana dos jovens japoneses exilados em casa dos pais – por tempo indefinido e imprevisível –, onde levam uma vida virtual em frente do computador. Decorrido algum tempo, menos do que seria de esperar ou eu esperava, esqueço-me por completo da carrinha, há mais de um mês que não apanho o autocarro para Lisboa e há mais de três semanas que não almoço nem janto fora; cinema e música ao vivo, não sei de nada.
Tivesse eu casado com uma feiticeira e podia ter a certeza de que só a maçava para estalar os dedos ou franzir o nariz para ir e regressar, são e salvo de pôr os pés nos sítios onde se convenceram que me apetece. Por exemplo, vontade até nem me falta de aceitar o convite da minha namorada de colégio – a das bicicletazinhas – para jantar em casa dela e actualizarmos dois anos de silêncio quebrado pelo desejo de Boas-Festas, manifestado por ela, e o envio dos meus dois últimos livros; «Depois falamos», acusou a recepção. Mas a directiva teutónica de avisar com dois dias de antecedência, como se fosse dar um jantar de gala em que não poderei participar com o blusão pelos ombros e pendurá-lo nas costas de uma cadeira, somado à impossibilidade de a pôr a andar da sala para fora, com o olhar dividido entre a várzea a anoitecer em frente e a indisfarçável luminosidade do portátil ao lado, levam-me, vão levar-me, a inventar a desculpa mais esfarrapada enviada por e-mail e a receber, acto seguido, uma chamada com duração inferior aos angustiados momentos de me saber órfão de Net.
São cinco e tal da manhã, mais precisamente cinco horas e onze minutos do estreado mês de Agosto, fumo o último charro com a luz apagada, curioso por saber quanto mais tempo levarei a isolar e a combinar, «desaparecer» e «não»; o Vento faz-se ouvir, outra vez.

6 comentários:

MCS disse...

Aqui é sempre a lápis:
http://themodernartist.wordpress.com/2010/04/19/pencil-carving-art-by-dalton-getty/

Cristina Torrão disse...

Gostei :)

Cristina Torrão disse...

P.S. Talvez fosse aconselhável deitar-se mais cedo. Quanto mais se afastar do ritmo "normal", mais lhe custará restabelecer os seus contactos...

fallorca disse...

K.Kiss, não me estou a lamuriar; sinto-me que nem um pardal, neste caso, um noitibó ;)

Cristina Torrão disse...

Tudo bem! O mais importante é sentirmo-nos bem na nossa pele ;)
(Adoro a palavra noitibó)!

noni disse...

Notícia de última hora(ainda não confirmada,d fonte oficiosigilosa) informa noitibós e corujas brancas que,cerca das 4 da matina, poderão deliciar-se com 1aurora boreal!