11 de agosto de 2010

Nem sempre a lápis (69)

Feita a catarse do blogue e da ida – sem retorno – a Asilah, sinto necessidade de dar um jeito aos livros, de lhes dar um sentido que me facilite o acesso rápido, sem os incorporar na organização burocrática por autor, cronológica, bibliográfica. Exceptuando as prateleiras museológicas para o património afectivo das colecções da & etc. e da frenesi, preciso apenas de arrumá-los de acordo com a presente necessidade de saber onde está determinado livro e alguns livros de determinado autor; sem permanência que a ultrapasse, outras urgências sobrevirão. Decidi também ir a Lisboa, sexta-feira; depois do pequeno-almoço abasteço-me para um fim-de-semana de cozinha – ao domingo não há sopa para funcionários e solitários autistas –, volto a casa para abrir o e-mail e traduzir horas razoáveis até ir a Lisboa; só isso. Como é bem possível que acabe por jantar e dormir uma noite a Mortágua, tendo o cuidado de evitar a Festa das Tasquinhas; para mal dos meus (muntos) pecados, a prótese já não me permite arroz de galo nem bacalhau no forno com batatas a murro a nadar em azeite, de quem o serve.
Quanto ao solitário autista, não é inteiramente verdade; ao fim do dia, quando repito o pequeno-almoço ao lanche para despachar o jantar, a mesa de vizinhas tagarelas e o recanto da minha –, onde inventei a existência de uma minúscula cobra verde no tronco da floreira, que me dá um ar exótico e deu cabo dos nervos de uma empregada durante uma semana –, essa tertúlia e eu passámos a cumprimentar-nos depois do estardalhaço armado por um cão com um boneco no berço de um dos netos que vêm arejar. O animal estava tão irritado e ela tão distraída, que até mordeu à dona, e aí não me contive: Esta agora foi cómica; então estou com os nervos em franja e ainda por cima bates-me? É assim que se traumatizam. Rimo-nos. Cruzámo-nos mais de trinta anos a subir e a descer a praceta, cabisbaixos, cara ao lado quando não dava para apontar em frente; irritavam-me solenemente as conversas com que bombardeavam a minha ausência, me interrompiam o direito de estar a olhar para nada; obrigaram-me, várias vezes, a mudar de mesa e a levar com o vaivém dos skaters. Exceptuando uma barbie sexagenária com expressão de bulldog, mantemos uma longeva e recíproca antipatia, já peguei numa bebé ao colo, e pareceu-me ou foi mesmo verdade, que as ouvi acotovelarem-se e baixar o tom de voz, enquanto esvaziava os bolsos dos chinos e dispunha em cima da mesa – com minúcia milimétrica, rigor de instalação –, o moleskine carteira-shandy, o porta-moedas de prata em cima dele, o trambolho do telemóvel ao lado, a lata de enrolar cigarros e a onça de tabaco em cima dela, saído de casa com o lápis acabado de afiar.

4 comentários:

MCS disse...

Pois no meu caso, que tinha os livros organizados por nacionalidades, tive que abandonar tal ideia. Agora estão organizados por tamanhos (!!!) assim consegui ganhar espaço para colocar um segundo e terceiro empilhamento.

fallorca disse...

Já desisti de «arrumar» livros, prefiro dar-lhes um jeito para os ter à mão; mas como alcatruzes de uma nora, nada da aridez da fixação.

Cristina Torrão disse...

Já há muito tempo que não via um porta-moedas de prata, fazem-me lembrar as cotas de malha da Idade Média... fiufiu...

Bem, também gostei da "barbie sexagenária com expressão de bulldog"...

fallorca disse...

K. Kiss, coisas de cota da 3.ª Idade (não confundir com III Reich)