28 de novembro de 2010

Nem sempre a lápis (107)

Fui ao Sul para ler Tanta Gente, Mariana, mas esperavam-me novas perspectivas de itinerância. Vivo em Carnaxide; a Nico vive no monte. Ela é filha do quarteirão da rua e travessa da Arrochela, Castelo de Silves, e adora o campo; eu nasci numa casa beirã com quintal e cultivo o anonimato empoleirado num apartamento suburbano. Digamos que encontrei a forma de me situar Longe do Mundo, com ele à mão. As circunstâncias – previsíveis, enquanto foi à Índia – determinaram que a Nico herdasse um quarto andar com vista para uma avenida anónima de Portimão (av. 25 de Abril, é a lei natural da vulgarização) e para os pátios dos vizinhos, nas traseiras, paralelos à varanda envidraçada. O edifício é um fiel seguidor do progresso fotocopiado do início dos anos 70 – as avenidas novas portimonenses, rumo à Rocha, ao Vau, ao Alvor – nas calmas; só a cor e o número de marquises os distingue. Varanda também a toda a largura da frente – perpendicular ao Clube Naval, aos arcos da ponte velha, aos cerros a caminho de Monchique –, a casa tem o hall atrofiado por uma dispensa dispensável, três quartos, cozinha espaçosa e duas casas de banho; a planta termina num salão em forma de l quadrado, maiúsculo, com uma área a ter em contemplativa consideração. Não a conhecia; problemas de estacionamento para subir, aguardava simplesmente que descessem. O que me fascinou, foi a possibilidade de conservar intactas e criar novas épocas com parte da existência. Depurar a sala de jantar o suficiente para a fazer caber na primeira divisão à entrada, como página de um álbum; derrubar a dispensa para abrir a porta da entrada e ser recebido pelo reflexo biselado do louceiro estilo inglês, tão marcante, conservando as quatro fotografias a preto e branco da Rocha e de Portimão, na coluna oposta, substituído o espelho vertical pela firmeza com que A Licorista se tem aguentado de pé; um placar de esmalte oval, com um sol sorridente a levar aos lábios um martelo Abel Pereira da Fonseca. Anda há meses na bagageira da carrinha: não quis voltar a entrar na casa de Carnaxide; intimamente, sabíamo-nos deslocados. Dois anos depois de ter herdado parte de uma biblioteca, reencontro-a entre o espólio numa garagem, estante desmontada, quatro escrivaninhas, um mostruário de mesas e de canapés, uma secção de candeeiros de uma loja de iluminação, um campo de futebol de carpetes de Arraiolos e gobelins; contratei uma cena de vida na aldeia, com ponte e rio, para me proteger as costas enquanto trabalho. Agrada-me a ideia dos nossos espaços coexistirem no salão – sozinhos e os dois – com os objectos e os estilos e os interesses que nos individualizam. Entretanto, arrumem-se os livros «a mais» em Carnaxide e no Monte Alto numa biblioteca, onde possam caber os da casa de Portimão.

3 comentários:

maria disse...

Não há carta pública sem texto íntimo. E vice-versa.

A ausência não como um vazio, mas um lugar de cruzamentos: este Nem sempre a lápis pode ler-se como um zoom numa das páginas das Cidades Invisíveis do I. Calvino.

fallorca disse...

Maria... não exagere :)

Ana Marques Pereira disse...

Compreendo pelo seu texto que é o feliz possuidor da placa da Licorista.
Estou a a fzer um estudo sobre o tema para um livro será que podia falar comigo?
Agradeço contacto para o mail
garfadasonline@gmail.com
Obrigada