30 de setembro de 2011
Às vezes, lá calha
«… longe de suspeitar que percebido assim eu acabava de receber mais uma graça: liberado na loucura, eu que só estava a meio caminho dessa lúcida escuridão; …»
Papiro do dia (136)
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[Raduan Nassar, Lavoura Arcaica; Relógio D’Água, Outubro 1999;
29 de setembro de 2011
28 de setembro de 2011
Às vezes, lá calha...
«… que rostos mais coalhados, nossos rostos adolescentes em volta daquela mesa: o pai à cabeceira, o relógio de parede às suas costas, cada palavra sua ponderada pelo pêndulo, e nada aqueles tempos nos distraído tanto como os sinos graves marcando as horas.»
(Raduan Nassar)
Nem sempre a lápis (215)
Olho para o passado e vejo ruínas. «O trabalho de restauro não só dissipa o charme e o mistério como produz o efeito, um simulacro, de rigor mortis» (Henry Miller). Perdi casas e perdi cães; perdi lugares e perdi sonhos, sobretudo os sonhos. Duvido que vá a Jajouka (até Jajouka), que volte a Marrocos. O ano passado, vivi na Asilah que conheci com a Nico, a sobreposição de dois espaços: a que foi a minha casa do forno, em Mortágua; a que é a casa dela, no Monte Alto. Vivo a vida à ordem; já não a tenho a prazo.
Papiro do dia (135)
«E o pai à cabeceira fez a pausa do costume, curta, densa, para que medíssemos em silêncio a majestade rústica da sua postura: o peito de madeira debaixo de um algodão grosso e limpo, o pescoço sólido sustentando uma cabeça grave, e as mãos de dorso largo prendendo firmes a quina da mesa como se prendessem a barra de um púlpito; e aproximando depois o bico de luz que deitava um lastro de cobre mais intenso em sua testa, e abrindo com os dedos macios a velha brochura, onde ele, numa caligrafia grande, angulosa, dura, trazia textos compilados, o pai, ao ser, não perdia nunca a solenidade: “Era uma vez um faminto.”»
26 de setembro de 2011
Às vezes, lá calha
(Raduan Nassar)
[passo]
Nem sempre a lápis (214)
[os sons]
Papiro do dia (134)
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[Raduan Nassar, Lavoura Arcaica; Relógio D’Água, Outubro 1999]
24 de setembro de 2011
Às vezes, lá calha...
«O que acontece de especial é que viver com os livros e às vezes escrevê-los tem a ver, ao mesmo tempo, com o trabalho e os tempos livres, o tal otium de que falavam os antigos, a “esfera” do vagar fora da qual, afinal de contas, nada se passa.»
(George Steiner)
Nem sempre a lápis (213)
Papiro do dia (133)
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[Raduan Nassar, Lavoura Arcaica; Relógio D’Água, Outubro 1999;
a caminho]
23 de setembro de 2011
22 de setembro de 2011
Às vezes, lá calha...
«Em princípio, foi sempre mais simples aliviar a dor do que dar prazer ou felicidade. A zona de uma dor é sempre mais facilmente localizável. Com uma enorme excepção – a dor emocional da perda, a dor que despedaça o coração. É uma dor que preenche o espaço de uma vida inteira.»
(John Berger)
Nem sempre a lápis (212)
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[refresh]
Papiro do dia (132)
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Para os desfavorecidos, a casa-lar é representada menos pela habitação em si do que por uma prática ou conjunto de práticas. Cada pessoa possui as suas. Tais práticas, verdadeiramente escolhidas e não impostas, oferecem, na sua repetição e apesar do seu carácter efémero, mais permanência e abrigo do que qualquer tecto. A casa-lar já não é habitação mas a história não contada de uma vida que está a ser vivida. No limite, se quisermos ser ainda mais brutais, a casa-lar não representa mais do que o nome que cada um tem – sendo que a maioria das pessoas nem sequer nome tem.»
[John Berger, E os Nossos Rostos, Meu Amor, Fugazes como Fotografias; trad. Helder Moura Pereira, Quasi, Janeiro 2008;
agulha]
agulha]
21 de setembro de 2011
«CINE MAR(A)VIL(H)A»
OLD SCHOOL#2 ANA VIDIGAL FALA DE CINE MAR(A)VIL(H)A from Susana Pomba on Vimeo.
Logo, às 22hno Espaço Teatro Praga (Poço do Bispo), Lisboa
(em loop) *One night only*
Segunda sessão OLD SCHOOL, desta vez com a apresentação de “CINE MAR(A)VIL(H)A” de ANA VIDIGAL, one night only, dia 21 de Setembro, às 22h. Sessão especial de projecção em loop de vídeos feitos pela artista para o facebook e youtube. Lembramos também que na mesma noite, ali mesmo ao lado em rua paralela, a Galeria Baginski inaugura também a exposição “Estilo Queen Anne” de Ana Vidigal, às 22h. Dose dupla de Vidigal em Marvila, Poço do Bispo.
20 de setembro de 2011
Às vezes, lá calha...
«Um nome e duas datas, a segunda tão precisa que inclui até o dia. É isto apenas o que fica registado. Acerca do que aconteceu entre as duas datas, para lá do mero facto da sobrevivência, nem uma palavra.»
(John Berger)
Nem sempre a lápis (211)
Não li e não escrevi uma linha e o sinal da Net era fraco, em Porto Covo; mais forte o do Sol e do mar e o da Lua, que te trouxeram. Mais tarde, li na bloga que «Lisboa tem uma polifonia assinalável de sotaques no metropolitano, nos quais reparo pois a simples audição é um passaporte para os mais diversos locais.» Vindo deles, ao longo da Costa Vicentina e pelo rodapé do Barlavento, descansei um pouco mais adiante, a ler: «Sou atraída pela diferença, e esta praia não fazia parte do meu léxico de mar e sol.»
Papiro do dia (131)
As inscrições não se dirigem aos vivos. Os que já sabem recordar os mortos não precisam que lhos lembrem. O que se inscreve é uma forma de identificação, dirigida, como qualquer identificação, a terceiros. As pedras tumulares são cartas de recomendação para os mortos, escritas na esperança de que não seja atribuído outro nome aos recentemente partidos.
Do cemitério tu e eu olhávamos para lá dos canais, para o mar, para o céu acima do mar, para as colinas de fetos. A linha da costa corta em declive como a fazer a passagem para algo que nasce ainda mais longe – na direcção do imenso Atlântico. É para este lugar de nascimento que os mortos viajam. Todos a uma distância que lhes permite ouvirem-se uns aos outros. Os vivos não conhecem essa língua. As nossas histórias não são lidas pelos mortos.»
[John Berger, E os Nossos Rostos, Meu Amor, Fugazes como Fotografias; trad. Helder Moura Pereira, Quasi, Janeiro 2008]
19 de setembro de 2011
18 de setembro de 2011
Às vezes, lá calha...
«Os que nos lêem e ouvem as nossas histórias vêem tudo através de uma lupa. A sua lente é o segredo de toda e qualquer narrativa, um segredo sempre renovado em cada história que nasce, um território entre o temporal e o intemporal.»
(John Berger)
Nem sempre a lápis (210)
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Papiro do dia (130)
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Raiva. A encher de choro uma caverna de medo e ira. O choro flutua no ar como folhas vermelhas, já desprendido de quem chorava mas caindo sobre o seu rosto, provocando mais choro ainda.
Consolação depois do choro. O estômago deixa de andar às voltas. Uma calma doçura, como se fosse mel, espalha-se pelo peito. Só o céu-da-boca permanece seco. As causas inexplicáveis desapareceram misteriosamente.
A incapacidade de recordar pode ser, em si mesma, uma memória. Pode ter-se já vivido com a experiência do inominado: havia certas forças elementares que eram reconhecíveis – o calor, o frio, a dor, a doçura. E também algumas pessoas. Mas não havia verbos nem substantivos. Mesmo a primeira pessoa do singular correspondia mais a uma convicção que se ia desenvolvendo do que a um facto concreto. Devido a esta ausência, não podia haver recordações (consideradas como distintas de outras funções da memória).
Outrora viveu-se no universo sem costura do inominado. O inominado implica que tudo seja contínuo. O sonho de uma língua universal que tudo dissesse em simultâneo talvez provenha da recordação de um tempo em que não havia recordações.»
[John Berger, E os Nossos Rostos, Meu Amor, Fugazes como Fotografias; trad. Helder Moura Pereira, Quasi, Janeiro 2008]
17 de setembro de 2011
16 de setembro de 2011
Porque a Net fornece um novo dia
«A 16 de Setembro estreamos em Viseu, no Teatro Viriato, NÃO SE BRINCA COM O AMOR de Alfred de Musset e durante um mês andaremos por Almada, Coimbra, Guimarães. Para, a 19 de Outubro pelas 19h00, abrirmos as portas do novo Teatro da Politécnica, com essa peça impossível (só representada 70 anos depois de escrita) e a exposição de esculturas de Ângelo de Sousa.»
Às vezes, lá calha...
«Querem, a todo o custo, fazer alguma coisa, pois têm medo de descobrir que estão sós. Agir em comum torna-os solidários, e provavelmente nada como uma acção em comum – se sai do habitual – é capaz de criar esse sentimento de unidade. É esse o mal deles.»
(Siegfried Lenz)
«É bom trabalhar nas Obras» (100)
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- Uma cueca, vem a calhar – disse o publicitário. – É uma coisa alegre.
- Este jovem é meu filho, Daniel. É guitarrista.
- Olá, Daniel. - É uma cueca dedicada ao meu marido. Detido e desaparecido.
- Com quem a vai dançar?
- Com ele, cavalheiro. Com o meu marido.
Tirou um lenço branco do peito e agitou-o delicadamente entre o indicador e o polegar da mão direita. O rapaz fez os rasgados preliminares e com voz aguda introduziu o primeiro verso: "Minha vida, em tempos fui feliz…"
O facto da mulher reagir aos passos de dança do seu desaparecido, com uma dignidade sem ênfase, tornava a sua dança ainda mais demolidora.
Bettini desculpou-se com uma expressão vaga e foi à casa de banho.
Deixou correr a água na nuca sem se importar que salpicasse a camisa. E esfregou o rosto debaixo do jorro como se quisesse que lhe pulverizasse a palidez.
E foi dessa maneira que também as suas lágrimas se dissolveram no lavatório.
* Abreviatura de zamacueca, dança popular chilena.»
Papiro do dia (129)
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[Siegfried Lenz, O Barco-Farol; trad. Inês Madeira de Andrade, Fragmentos, Setembro 1987;
15 de setembro de 2011
14 de setembro de 2011
Às vezes, lá calha...
«Não diga nada do que lhe interessa, como acontece com uma boa narrativa. Não é preciso compreender tudo e têm de se aceitar certas incertezas.»
(Siegfried Lenz)
«É bom trabalhar nas Obras» (99)
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Ké kaxam?
Nada, Adrián Bettini, santo pai dos ingénuos, disse para consigo. Não tinha ké kaxado nada! Se ouvir a letra da sua canção na boca de um polícia desembaraçado a dar ordens, mas lerdo a pronunciar metáforas, já o tinha sepultado na mais profunda das humilhações, não imaginou que o inferno tem sempre outro subsolo, outro circulozinho, companheiro de Dante, sob o qual se pode continuar a descer infinitamente.
Carrasco agora tão amável em subir ainda mais o volume do amplificador para que pudesse ouvir “ao vivo e em directo”, o comentário do próprio ministro do Interior aos seus versinhos. Que veio precedido por um riso despreocupado.
- Na verdade, material muito interessante, Carrasco.
- Sob o ponto de vista policial ou poético, senhor ministro?
- De ambos. Diga-me, capitão, como se chama esse Neruda que meteu dentro?
O oficial tapou o auscultador do telefone e levantando o queixo, dirigiu-se ao publicitário.
- Com’é que te chamas, artolas?
- Bettini, Adrián Bettini.
- Diz que se chama Adrián Bettini.
Do outro lado da linha fez-se silêncio e depois explodiu uma alegre gargalhada.
- Não me diga que tem aí o próprio Adrián Bettini!
- Quem é ele, senhor ministro?
- O chefe da campanha do “Não a Pinochet”.
- É perigoso?
- Qual quê! Com versinhos desses não vai aquecer ninguém.
- Embora aqui no panfleto fale de insurreição. Amanso-o um pouco?
- Não, homem. De maneira nenhuma. Não lhe toque nem com a pétala de uma rosa. Estamos em democracia. Bettini pode escrever os disparates que quiser.
- Mas, é contra o meu general!
- Mesmo que seja contra o nosso general. A democracia, capitão! Um simples exagero das estatísticas. Os votos dos cabeludos valem tanto como os nossos votos.
- E então?
- Devolva-lhe os seus papelinhos e ele que se vá embora.
- E o que é que fazemos com o automóvel dele? Enfiou uma bruta marrada no furgão da esquadra.
- Mande-o arranjar na oficina do grupo móvel na calle Cármen. Têm lá um bate-chapas que faz maravilhas.
- E a conta?
- Envie-a para o ministério, Carrasco. Diga a Bettini que é uma atenção da casa.»
[Antonio Skármeta, Os dias do arco-íris; em breve na Teodolito]
Papiro do dia (128)
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- Foi advogado?
- Sou advogado entre outras coisas – disse o doutor Caspary e fez uma estranha e irónica vénia para Freytag.»
[Siegfried Lenz, O Barco-Farol; trad. Inês Madeira de Andrade, Fragmentos, Setembro 1987;
13 de setembro de 2011
12 de setembro de 2011
Porque a Net fornece um novo dia
Às vezes, lá calha...
«Freytag lembrou-se do mercado em Djibuti, onde duas pessoas que têm alguma coisa a resolver se retiram para debaixo de um pano preto e continuam em silêncio o que tinham começado a discutir com palavras.»
(Siegfried Lenz)
«É bom trabalhar nas Obras» (98)
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Duas horas sem que nenhum funcionário desse início a qualquer tipo de diligência. De vez em quando, assomava um oficial, lançava uma vista de olhos ao grupo e desaparecia numa divisão traseira. A prisão era sempre assim. A sensação de um tempo infinito, inútil. Uma antessala para o incerto. Esse interlúdio que incha com a desolação. A humilhante espera. Tempo para se imaginar os entes queridos preocupados com a nossa ausência. O agente de serviço a teclar numa velha máquina Remington um relatório que, meses mais tarde, talvez um juiz local viesse a ler.
A última vez que o prenderam, quiseram dar-lhe uma tareia exemplar. Tinha participado num protesto de rua contra o aumento dos transportes, para resgatar uma jovem arrastada para o furgão policial por uns agentes à civil. Sem estar organicamente ligado a esse acto, seguiu o impulso do seu coração, e no interrogatório não soube dar o nome de contactos, nem a direcção dos revoltosos do movimento, simplesmente porque os ignorava.
Às vezes, o seu maldito coração fazia-o agir imprudentemente mais depressa do que a cabeça.
Outras vezes, a língua saía-lhe disparada com as verdades a arder na ponta. Dizia-as, mesmo sabendo que viria a sofrer as consequências. Em todas essas ocasiões tinha sido ele, somente o seu corpo quem estava em jogo. Mas agora tudo podia desembocar numa catástrofe que implicaria muita gente: se as imagens da campanha do “Não” chegassem às mãos do ministro do Interior, não só iria pôr em risco as pessoas que tinham emprestado os seus rostos para cantar e contestar o ditador, como denunciaria o carácter da sua campanha aos seus rivais do "Sim a Pinochet": iria dar-lhes tempo para desenharem um antídoto e criarem uma estratégia que anulasse as improváveis virtudes de comunicação que a sua ingénua obra pudesse ter.
Sentiu-se um traidor por ter bebido álcool na embaixada, sabendo que levava a fita U-Matic no automóvel.
Era compreensível, porque estava nervoso, irritado, inseguro. Ia mostrar pela primeira vez a sua obra-prima aos dirigentes políticos do "Não" e temia o seu veredicto. Tão brutalmente fora de training. Maldita a hora em que tinha sucumbido, contra toda a análise ou lógica, à vaidade de assumir a tentação de… salvar o Chile! Corrigiu esse pensamento patético. O Chile não tinha sido salvo pelos mártires dos movimentos de resistência, nem pelos militares disciplinados, nem pelas centenas de milhares de amantes da liberdade que, aqui e ali, enfrentavam a repressão, e ele, sumo pontífice dos néscios, tinha aceitado dirigir essa campanha que, em vez de o levar à glória, o iria conduzir ao inferno.
Carente de ideias, entregara-se aos delírios do meia-leca: o tal Raúl Alarcón, com a sua Valsa do Não. Agora o seu vídeo desastroso podia cair nas mãos do inimigo.
E o factor azar. Bateu. Mas bateu contra um furgão de carabineiros! Com um bocadinho de má vontade, ao inspeccionarem a sua ficha de detenções e invocando a sua incendiária Valsa do Não no vídeo, os carabineiros podiam entregá-lo aos agentes da secreta, que lhe aplicariam a Lei Anti-terrorista.
A outra clavícula.
Talvez o fémur.
E isto, com sorte.
Vindo da rua, entrou um oficial superior que fez soar as chaves do seu automóvel como castanholas.
- Bettini! – chamou.»
Papiro do dia (127)
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- Mas está amarrado – disse o doutor Caspary. – Está fundeado e não se consegue libertar, e fica aqui no Verão e no Inverno enquanto os outros navegam. Mas um barco tem de estar a caminho entre os portos, tem de estar ausente e regressar, tem de ter alguma coisa para contar. Com um barco tem de se encontrar o desconhecido. Este barco foi, desde o princípio, concebido para a amarra, construído para ser um prisioneiro responsável para quem todos os portos estão fechados.
- Como alguém condenado a prisão perpétua – disse o gigante.
- Os outros estão a caminho e o senhor está seguro à amarra – disse o doutor Caspary. – Talvez seja por causa disso que os seus antecessores têm caras tão tristes: este cativeiro sob o mesmo horizonte, na mesma costa.
- Os prisioneiros também têm algum poder – disse Freytag. – Os carcereiros dependem muito mais dos seus prisioneiros do que os prisioneiros dos seus carcereiros: se não fossemos nós, haveria aqui um cemitério de barcos bem cuidado, e poderiam ver-se por toda a parte da costa os ferros de barcos afundados, como pregos numa tábua de faquir. A costa inteira estaria cheia de cascos de navios, e lá fora, onde havia zonas minadas, estariam ao lado uns dos outros, ou então mesmo uns em cima dos outros. Os outros só podem navegar porque nós estamos seguros à amarra e podem ter confiança nos sinais de luz que emitimos. Onde há um barco-farol significa que se passa alguma coisa. Eles sabem isso e prestam atenção assim que dão por nós.
- Mas os outros são livres – disse o doutor Caspary.
- Os outros dependem de nós – disse Freytag. – Dominamo-los e, se quisermos, podemos mandá-los para os bancos de areia ou para as zonas minadas, ou então para um canal onde, passada uma noite, ficam com o valor de sucata. É assim – disse Freytag – e não de outra maneira.»
[Siegfried Lenz, O Barco-Farol; trad. Inês Madeira de Andrade, Fragmentos, Setembro 1987]
11 de setembro de 2011
10 de setembro de 2011
Às vezes, lá calha...
«Escrever sobre tudo, tudo ao mesmo tempo, é não escrever. Não é nada. E é uma leitura insustentável, do mesmo modo que uma publicidade.»
(Marguerite Duras)
«É bom trabalhar nas Obras» (97)
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Saltou da resignação fatalista para o pânico quando descobriu que o veículo contra o qual se tinha enfaixado, era um furgão de carabineiros. Num lampejo de lucidez, escondeu a fita U-matic com a campanha do "Não" debaixo do assento do condutor e, resignadamente, accionou o manípulo que a abria a janela do lado dele.
As buzinadelas dos condutores, impacientes com este novo engarrafamento, aumentou através da janela aberta. Faziam-lhe ranger os nervos, precisamente neste momento em que necessitava de calma, delicadeza, esperteza. Moderação. Bom ânimo.
Ali estava agora o carabineiro e o seu característico excesso de formalidade a ordenar-lhe com azedume:
- Os seus documentos.
Quando enterrou a mão no bolso, veio junto com a carteira o convite para o acto cultural da embaixada da Argentina. Sentiu que havia ali a possibilidade de um refúgio, um breve estratagema para amortecer a pancada que viria a seguir.
Estendeu-lhe o convite com o escudo transandino. Depois de o olhar sem interesse, o polícia devolveu-lho, indiferente.
- Os seus documentos, senhor.
- Sim, sim, meu tenente – disse Bettini, a procurar na carteira. Enquanto o fazia, como se exibisse um absurdo salvo-conduto, acrescentou –: Fique o senhor a saber que venho de uma recepção na embaixada da Argentina. Perto daqui. A dois quarteirões. Em Vicuña Mackenna. Uma recepção do senhor embaixador. O agente pegou nos documentos protegendo-os da morrinha com a mão esquerda.
- O seu nome é Adrián Bettini?
- Sim, meu tenente. Venho de uma recepção na embaixada da Argentina. A embaixada da irmã República Argentina.
- Desligue o motor e saia.
- Com muito gosto. Não sei como aconteceu este lamentável acidente. O asfalto molhado…
- O asfalto está molhado para todos. Só o senhor é que se estampa.
- Sim, meu oficial. É que eu vinha de uma recepção da embaixada da Argentina…
- Consumiu álcool?
Absurdamente, agora procurou tapar o hálito. Absurdamente também, respondeu:
Absurdamente, agora procurou tapar o hálito. Absurdamente também, respondeu:
- Não me parece.
- Vai ter de me acompanhar à esquadra, cavalheiro. O seu colega desviou o trânsito para um lado e indicou a Bettini que estacionasse o automóvel em cima do passeio.
- Vai dentro. Condução sob o efeito de álcool e danos num veículo oficial das Forças Armadas e da Ordem.
Assim que deixou o automóvel à beira de um plátano oriental, Bettini desceu do veículo e, depois de o fechar, quis guardar as chaves no bolso. O carabineiro segurou-lhe o pulso.
- Eu fico com as chaves.
- É que… - É que, o quê?... Acha que os carabineiros lhe vão roubar o seu automóvel?
Não podia dizer que o quê.
Estava ali a campanha do "Não", que dentro de poucos dias ia ser apresentada diante do Chile inteiro. Para sua humilhação. Para seu funeral. O seu apocalipse.
Para quê dizer, nada?
- Venho de uma recepção na embaixada da Argentina…»
Papiro do dia (126)
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Creio que é isso que eu censuro aos livros em geral: o facto de não serem livres. Vemo-los através da escrita: são fabricados, são organizados, regulamentados, poderíamos dizer, conformes. Uma função de revisão que o escritor tem muitas vezes em relação a si próprio. O escritor, então, torna-se no seu próprio chui. Quero dizer com isso a procura da boa forma, quer dizer, da forma mais corrente, mais clara e mais inofensiva. Há ainda gerações de mortos que fazem livros pudibundos. Mesmo os jovens: livros encantadores, sem qualquer prolongamento, sem noite. Sem silêncio. Por outras palavras: ser verdadeiro autor. Livros diurnos, de passatempo, de viagem. Mas não livros que se incrustem no pensamento e que digam o luto negro de todas as vidas, o lugar-comum de todos os passatempos.
O outro trabalho, para os escritores, é aquele que por vezes envergonha, aquele que provoca, a maior parte do tempo, o mais violento remorso de natureza política. Sei que permanecemos inconsoláveis. E que nos tornamos maus como os cães da sua polícia.
O alívio dá-se quando a noite começa a instalar-se. Quando o trabalho cessa lá fora. Resta o luxo que temos, nós, de podermos escrever de noite. Nós podemos escrever a qualquer hora. Não somos sancionados por ordens, horários, chefes, armas, multas, insultos, chuis, chefes e mais chefes. E das galinhas-chocas dos fascismo de amanhã.»
[Marguerite Duras, escrever; trad. Vanda Anastácio, Difel, Outubro 2001;
9 de setembro de 2011
8 de setembro de 2011
Às vezes, lá calha...
«Estar só com o livro ainda não escrito é estar ainda no primeiro sono da humanidade. É isso. É, também, estar só com a escrita ainda em fase de pousio. É tentar não morrer dela.»
(Marguerite Duras)
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