2 de fevereiro de 2013

Nem sempre a lápis (344)

até Jajouka
(2006)
4. Faz um calor sufocante; ao longo do rio e das margens da barragem da Aguieira vêem-se bandos de famílias espojados na relva. Vistos da ponte lembram uma feira, um arraial de plásticos coloridos, em hilariante contraste com a arrogância metalizada dos veículos acautelados sob o recato dos freixos e chorões. (...) «Já cheira a Algarve…», disse-me a Olga com expressão sonhadora a primeira vez que chegámos a Santana da Serra, a meio de uma tarde de Maio de 1976. Decorridos trinta anos continuo a sentir esse cheiro intacto ao alcance da mão e das minhas narinas surpreendidas; motivo de peso para continuar a usar a Nacional com os vidros da carrinha bem abertos.
(...) Parei o carro para o meu pai cumprimentar um rapaz da sua criação – «Já não te lembras de mim, ó Arelo?», enquanto o outro folheava um álbum com oitenta anos à procura da expressão ou da voz que lhe era familiar, catano! – e vi por entre a voragem do mato o que resta da eira. Gostava de me deitar ali depois de jantar, nas lajes quentes, a ouvir os manguais a malhar pão e tretas cochichadas e interditas às primas, que nos ficavam a ver sentadinhas nos degraus da escada, a uma distância que as tias lá sabiam por que a consideravam suficientemente prudente. Se calhar, roídas de inveja; se calhar, talvez não. Volta e meia viravam a cabeça e via-as com a mão a tapar a boca e a rirem-se a olhar-nos pelo canto do olho, as grandes ranhosas!
(...) encaminho-me para o Café do Casino – esperançado de que o aspecto exterior corresponda ao interior – decidido a comprar um livro e uma lapiseira. Mas quando entro, enquanto o meu sobrinho pedia as bicas a uma empregadita vestida à civil, como uma vulgar cliente, não vi as estantes baixas onde, como se atraído pela inevitabilidade do destino, achei o único exemplar de Apresentação do Rosto (Herberto Helder) entre um amontoado de livralhada para os decadentes veraneantes que, no início dos anos 70, ainda teimavam em ir a águas para o Luso. Nessa altura, eu só tinha lido, emprestado e com prazo de devolução, A Colher na Boca, e marimbei-me para o filme que acho que ia ver (...) deixando-me ficar a ler no café até os empregados, fardados como funcionários do casino, pigarrearem de toalha na mão para me darem a entender que já chegava; podia estragar a vista.
 

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