«Estivera muito tempo sentado à mesa, com uma garrafa de cerveja ainda meia, numa posição descontraída, as coxas afastadas e o pé direito sobre o tornozelo esquerdo O seu cabelo precisava de ser cortado e as madeixas irregulares caíam suavemente para a testa; a sua expressão ao olhar para a mesa era absorta mas não imóvel, mudava rapidamente com o passar dos pensamentos. O rosto era magro e sugeria inquietação e uma certa perplexidade inocente e pura. No chão ao lado do rapaz havia duas malas e um caixote, cuidadosamente etiquetados, com um cartão onde estava dactilografado o seu nome, Andrew Leander, e um endereço numa das maiores cidades da Geórgia.
Chegara àquele lugar embriagado, em parte pelas goladas de aguardente que um homem no autocarro lhe oferecera, mas sobretudo pela expectativa que se apoderara dele nas últimas horas de viagem. E esse sentimento não era sem motivo. Três anos antes, quando tinha dezassete anos, o jovem saíra de casa num impulso violento, um viajante inexperiente que entrava com medo no desconhecido, certo de nunca voltar ao ponto de parida. E agora, depois de três anos, estava de regresso.
Sentado à mesa daquele restaurante de uma pequena cidade sem nome, Andrew sentia-se mais calmo. Mas enquanto estava sentado com a sua cerveja (de tal forma um estranho, que era como se estivesse magicamente suspenso da própria terra) a memória de todos os de casa passavam dentro dele – com a claridade das bobinas de um filme – por vezes precisa e com padrões bem definidos, e de novo numa desordem caótica.
E havia um pequeno episódio que voltava uma e outra vez à sua mente, embora antes daquela noite não o tivesse recordado durante anos. Era da altura em que ele e a irmã tinham feito um planador no pátio das traseiras, e talvez se lembrasse dele porque as coisas que sentira então se pareciam tanto com a expectativa que esta viagem trazia agora.»
[Carson McCullers, Contos Escolhidos [Fragmento sem título]; trad. Ana Teresa Pereira, Relógio d’Água, Agosto 2012;
serrenho monchiqueiro]
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