«Não foi aquilo que esperamos de um concerto. Por um lado, o quarto era tão alto e nu que tornava os sons mais altos, fortes, de tal modo que pareciam ressoar dentro dos nossos ossos (mais tarde, explicou-me que era o sítio ideal para praticar porque assim conseguia aperceber-se da mais pequena falha). Ela fazia caretas e resmungava muito, enquanto tocava e tornava a tocar o mesmo trecho vezes sem conta. Aquela corrida estrepitosa que estava a tocar quando cheguei deve tê-la feito dez ou quinze vezes seguidas, por vezes continuando o trecho, outras vezes voltando atrás, sempre a recomeçar. E de cada vez era ligeiramente diferente. Até que, finalmente, saiu igual duas vezes seguidas. Tinha conseguido. Logo a seguir continuou. E quando tocou todo o movimento, aquele trecho soou igual pela terceira vez. Já estava. Porreiro.
Nunca antes me tinha passado pela cabeça que a música e o raciocínio têm tanto em comum. De facto, pode dizer-se que a música é um outro modo de pensar, ou talvez pensar seja uma outra forma de música.»
[Ursula K. Le Guin, Tão longe de sítio nenhum; Fragmentos, Julho 1987;
dá-me música]
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