Não as houve a noite toda, mas Ignacio já não estava ali. Tinha-se ido embora. Estava a recordar o «agora» porque já tinha viajado, e tinha deixado de ser ele e voltava sobre os seus passos. Não havia perigo, só recordação. Desfiles de carros com os copos, cheios de música, fanfarronice estudantil, incentivo rasca, por entre uma pétrea disposição cubista de blocos com olhos que se iam apagando, claridades de lua artificiais ao longo das ruas, sincronização de semáforos. O tempo e o espaço, um salto em frente, outro para trás, tinham-se convertido numa brincadeira, um complicado laço que não enlaçava nada excepto a sua própria abstracção. Ignacio era um olho que via, umas pernas que acompanhavam uma cabeça que pensava nas suas coisas e a quem era indiferente esperar em qualquer sítio. E ainda lhe restava capacidade para pensar o que teria sido da perseverança do seu irmão (os seus sistemas infalíveis, os seus percursos, uma lógica íntima) canalizada por outros rumos. Caminharam a noite toda. Caminharam e fumaram, quase sem falar. Sentavam-se nos bancos donde se vislumbrava uma persiana metálica meia fechada e, atrás dela, uma luz e movimentos fugazes. Carlos observava. Ignacio, que não entendia, recordava na sua esfera de tempos simultâneos. E recordava a última noite que passou com Vicky, festas e lutas e aquele corpo e aquelas palavras que se tornaram um hábito e, agora, alguns meses depois, não eram nada. E só podia recordar antes que o seu único irmão dissesse «anda, vamos» como, através da vidraça, nos relvados que tinha imaginado saturados do cheiro a relva acabada de cortar, embranquecidos pela luz, tinha visto dois homens, quase iguais e muito diferentes, que não pareciam estar ali e de repente se tinham posto a rir. Tinha-lhe parecido uma cena absurda.
- Vamos onde está a massa.»
[Francisco Casavella, Um Anão Espanhol Suicida-se em Las Vegas; em tradução para a Minotauro]
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