«E foi durante as primeiras horas daquele anoitecer, ao dar-me conta de que já não podia ter acesso à cerimónia das estirpes que viviam sob o mesmo céu de inocência, quando comecei a ser outro.
Primeiro, tinha compreendido que os representantes daquelas estirpes não olhavam para mim, porque eu estava do outro lado das recordações, dos que tinham as costas pesadas de remorsos; e a carga estava tão bem grudada como a bossa dos camelos. Depois, compreendi que os dois lados das recordações eram como os dois lados do meu corpo: apoiava-me num ou noutro, mudava de posição como quem não consegue dormir e não sabe sobre qual dos dois iria cair a benesse do sono. Mas antes de dormir, estava por conta das recordações como um espectador obrigado a presenciar o trabalho de duas companhias com particularidades muito distintas e sem saber que cenário e que recordações se iriam iluminar primeiro, como seria a sua alternância e as relações que teriam os que actuavam, pois as companhias tinham uma sala e um empresário comum, participava quase sempre um mesmo autor e actuavam sempre uma criança e um homem.»
[Felisberto Hernández, Contos Reunidos; lá para Março na Col. Ovelha Negra / Oficina do Livro;
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