«No Inverno mal se percebe a fina película. A humidade petrificou-a. Mas com o tempo seco recomeça a cobrir os campos. É quase indelével. Penetra as narinas e dificulta a respiração. As pessoas sorvem o ar quando o Setembro destroça o estio; chegam os indícios da chuva.
Depois, em Outubro, a tormenta arrasta o vento. Vem das montanhas. De novo se ergue o pó, em ondas de cinza, e alastra pela campina. É triste o final de Outubro. O tempo paralisa-se sob as investidas da poeira e morre na agonia da pedra.
É uma tarde no fim de Setembro. Talvez já se pressinta a libertação da chuva. Ou é um café muito pobre a que se chama casino à falta de outro nome. A sala é espaçosa. No fundo há um piano e as porcelanas azuis repousam no alçado negro. O soalho estala, ressequido pelo Verão que deve ter sido longo. A areia, nas junções das pranchas, range como vidro esmagado. Os homens conversam num recanto da sala e mostram, nos gestos, o alívio da liberdade. Estão alheios e já ninguém lhes poderá disputar o Inverno. O sol rompe no mar e o casino recebe, na proa, o areal da praia.
Ao esclarecer este ponto, revê, ou repete, o movimento de quem entra e, rodando o interruptor, acende a luz nas salas. A claridade só dura rápidos segundos. É o tempo para que os objectos se revelem nitidamente: as mesas e o pano branco que cobre os móveis e os cadeirões. A lareira. Ainda negro, o rectângulo da janela. É uma manhão de chuva, afinal. Os jornalistas distraem-se nos julgamentos políticos. A cidade já tem a sua conta.
Eu estu ao centro, à mesa de saia, sob o influxo dos raios de luz. O trigo pesado ondula ao sabor do vento no campo que deve existir ao nível da clarabóia. Os ceifeiros cantam e sinto-lhes os passos, os movimentos bruscos das mãos que manejam foices. A forma como descansam ou comem, sob o sol de Verão que baixa até nós na frieza do Inverno. Sei que é dia, além, a muitos metros de viagem. Pelo lado de fora não há gelo, garante-me, olhando-me como se fosse possível conversar. Não posso descobrir o que ocorre, se ele lê ou apenas folheia um livro.»
[João Palma-Ferreira, Os Crânioclastas (desenhos de Catherine Labey); este Livro exclusivamente reservado aos amigos da Editorial Estúdios Cor, foi composto e impresso na Tipografia Peres, em Lisboa, no Natal de 1972]
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