«Não havia neste choro o mínimo de falsidade. A mulher de Lenz era sincera, mão havia qualquer interferência da intenção. O que existia era, sim, a manifestação de uma eficácia impressionante por parte daquele mecanismo a que chamamos enterro. Cada pessoa que chorava, e algumas tinham sido vistas a baixar a cabeça, chorava não pelo morto mas pelo ruído que as rodas daquele mecanismo libertavam. Havia, tanto nas palavras religiosas quanto nos gestos quase universais dos soldados a baixarem o caixão em direcção à terra, a fixação num ponto que era comum e não já individual. Esse ponto que unia a comunidade dos presentes era a sensação de que cada um deles poderia, no dia seguinte, ser o morto que os outros homens respeitam. Chorava-se em conjunto pelo fracasso da cidade: ainda não se encontrara antídoto para aquele ruído que parecia ser libertado em cada enterro. Cada homem reivindicava que a morte – e o seu sistema de funcionamento – terminasse antes de chegar a si. E em cada funeral a despedida do morto era também o relembrar de um fracasso comum, de um fracasso, inclusive, da mais alta referência dos humanos: a sua cultura, a sua forma de raciocinar que construíra um novo mundo e que quase tornara o perigo, em tempo de paz, uma energia não normal, extraordinária mesmo. De facto, nas cidades sem guerra, o perigo tornara-se raro, mas a morte, essa, continuava abundante; parecia impossível ao homem dominar o seu preço: este continuava baixo, acessível, igual ao de qualquer produto insignificante. A morte, cada morte individual, manifestava o fracasso económico, técnico e cultural das cidades.»
[Gonçalo M. Tavares, Aprender a rezar na Era da Técnica; Caminho, Outubro 2007;
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