28 de janeiro de 2011

«É bom trabalhar nas Obras» (65)

«Escrevo tudo isto neste pequeno apartamento de paredes brancas, sem livros. Simpatizo muito com paredes vazias. Se um dia tivesse de decorar uma das desta casa, pendurava um quadro que reproduzisse a esfinge dos gelos que Gordon Pym julgou ver no fim do mundo. Mas nunca irei pendurar nada. Necessito, sobretudo, de escrever com uma parede nua nas minhas costas, pois parece-me, sem dúvida, o ambiente mais adequado para trabalhar num Catálogo de ausentes. Ou acaso não seria ridículo que houvesse cores no meu apartamento? Agradam-me estas paredes brancas e agrada-me o frio. Na realidade, o frio fascina-me de tal maneira que cheguei a pensar que diz a verdade sobre a essência da vida. Detesto o Verão, o suor das sogras esparramadas pelas areias do circo das praias, o farnel ao sol, os lenços para o suor. Parece-me que o frio é muito elegante e que se ri de uma maneira infinitamente séria. E o resto é silêncio, vulgaridade, fedor e gordura de barraca de praia. Fascinam-me os flocos suspensos no ar. Amo as quedas de neve, a luz espectral da chuva, a geometria acidental da brancura das paredes desta casa.
Gosto de pensar no palpitar da água debaixo de gelo.
Aborreço-me bastante, pelo menos tanto como a minha mãe.
Conforta-me saber que ainda não é demasiado tarde para vir a ter grandeza de carácter.
Gostava de sair e de fumar um cigarro de gelo.
Às vezes, faço-me passar por Pierre Gould, pelo historiador do aborrecimento, mas às vezes também pelo seu descendente, aquele que também se chama Pierre Gould e aparece nos contos de Bernard Quiriny.
Em todo o caso, agrada-me saber-me diferente. A capacidade de alegria atrofia quando queremos ser iguais aos outros.»
[Do prefácio de Vila-Matas, in Contos Carnívoros, Bernard Quiriny; AHAB, muito em breve]

4 comentários:

imo disse...

a minha lista de livros em espera não pára de crescer contigo...
mais um! :)

fallorca disse...

Deixa lá que também tens contribuído para o crescimento da minha :)

imo disse...

;)

Cristina Torrão disse...

Às vezes, pergunto-me qual extremo será mais difícil de suportar, em termos de calor e de frio. Os cães, por exemplo, optam pelo frio, ficam muito mais activos. Claro que, para descansar, procuram o calor dos seus próximos. Mas o frio, pelo menos, dá-nos essa possibilidade...