24 de janeiro de 2011

«É bom trabalhar nas Obras» (64)

Começa assim:
«Não se vão acreditar, vão dizer que sou tonto, mas quando era criança os meus sonhos eram voar, tornar-me invisível e ver filmes em minha casa. Diziam-me: espera que chegue a televisão, vai ser como teres um cinema no teu quarto. Agora já sou adulto e rio-me de tudo isso. Claro, há televisões em toda a parte e sei que ninguém consegue voar, a menos que entre num avião. A fórmula da invisibilidade ainda não foi descoberta.
Lembro-me da primeira vez. Instalaram um aparelho em Regalos Nieto, e na esquina da avenida Juárez com a San Juan de Letrán havia tumultos para ver as figurinhas. Só passavam documentários: cães de caça, esquiadores, praias do Havai, ursos polares, aviões supersónicos.
Mas, a quem me dirijo eu? É suposto que ninguém venha a ler este diário. No Natal ofereceram-me o bloco e não quis pôr nada nas suas páginas. Escrever um diário parece-me coisa de mulheres. Fiz troça da minha irmã porque anota muitas parvoíces no dela: “Querido diário, hoje foi um dia tristíssimo, esperei pelo telefonema do Gabriel em vão”; coisas do género. Daqui aos sobrescritos perfumados, vai um passo. O que os meus colegas de escola não se iriam rir se soubessem que também ando metido nestas mariquices.
O professor Castañeda recomendou-nos que escrevêssemos um diário. Segundo ele, ensina a pensar. Ao redigi-los, arrumamos as coisas. Com o tempo, torna-se interessante ver como éramos, o que fazíamos, qual era a nossa opinião, como mudámos. Por falar nisso, Castañeda deu um dez à minha redacção sobre a árvore e publicou os versos que escrevi para o dia da mãe na revista do liceu. Em ditados e redacções ninguém me ganha; dou erros, mas tenho melhor ortografia e pontuação do que os outros. Também sou bom a história, a inglês e a civismo. Em contrapartida, sou uma besta a física, a química, a matemática e a desenho. Na minha sala não há mais nenhum que tenha lido El tesoro de la juventude quase todo, nem Emilio Salgari todo e muitos romances de Alexandre Dumas e Júlio Verne. Adoro livros, mas o professor de ginástica disse-nos que ler muito enfraquece a vontade. Ninguém entende os professores, um diz uma coisa e o outro, o contrário.
Escrever tem o seu encanto: espanta-me ver como as letras se unem e formam palavras e saem coisas que não pensávamos dizer. Além disso, o que não se escreve, esquece-se: desafio quem quer que seja a dizer-me, dia a dia, o que fez o ano passado. A partir de agora, proponho-me contar o que me acontecer.
Vou esconder este caderno. Se alguém o lesse, eu iria ficar muito envergonhado.»
[José Emilio Pacheco, O Princípio do Prazer; em tradução para a Colecção Ovelha Negra / Oficina do Livro;

1 comentário:

MCS disse...

E começa muito bem ;-)

"...ler muito enfraquece a vontade"??
Professor de ginástica, está a "encher" 100! só por causa das coisas.