«Ao longo daqueles dias, tão cheios de premonição que não tiveram história, tão obcecados com o que vinha que mal se aperceberam do que já era, conseguiu acalmar a terrível angústia da mulher e encarar os amigos com risos e graças acerca do cancro. Todavia, por detrás da resignação, estava não apenas a esperança de que, milagrosamente, todos estivessem enganados, quer dizer, estavam não apenas as mentiras que a vida conta para enganar a morte, mas também uma espécie de satisfação pelo cumprimento da profecia antiga, pela realização do destino, uma satisfação próxima do sentimento suicida das crianças: quando proclamava à sua volta que não tinha importância, que era até um alívio, que se ia embora contente, que sessenta anos eram anos bastantes, que só tinha pena dos próximos, a mulher, os filhos, os pais e irmãs, os cães, estava a reproduzir a ameaça, não inteiramente retórica, antes cheia de perigo e de terror, que a criança ou o jovem adolescente formulam num pedido desesperado de socorro: eu morro e depois vocês vão ver… Disse-me, numa das sessões, que experimentava uma grande ambiguidade de sentimentos quando algum dos seus amigos, ao saberem o que o esperava, começavam a chorar ou ficavam terrivelmente angustiados, tentando animá-lo mas precisando antes que os animassem a eles. A ambiguidade provinha do facto de a piedade e o desgosto confirmarem a sentença de morte. Estes amigos confessavam ao chorar que não podiam fazer nada por ele, e a criança, desprotegida e indefesa, sentia ao mesmo tempo medo e fúria.»
[Paulo Varela Gomes, O Verão de 2012; Tinta-da-China, Janeiro 2013]
2 comentários:
"Namorei-o" ontem na livraria e gostei do que me disse em pouco tempo. Amanhã, talvez o traga para o aconchego do lar. :)
:)
Enviar um comentário