18 de maio de 2013

Nem sempre a lápis (368)

até Jajouka
(2006)
28. Esta manhã, creio ter feito as coisas como devem ser feitas: deixei a Olga em Portimão, vim pelo Parchal – bebi outra bica, enquanto enrolava quatro cigarros – e levantei cem euros no Multibanco; passei no cruzamento de Porches para o Monte Alto caladinho que nem um rato e entrei naturalmente na Via do Infante, em Alcantarilha, sem ser assediado pelas habituais ruminações se tivesse entrado em Lagoa e, com o mar azul a brilhar à minha direita, percorri bonacheironamente os cento e cinquenta quilómetros até Huelva, apenas atento ao manómetro do gasóleo e da temperatura deste jipe a que ainda não me habituei – e tive de largar dois mil e quinhentos euros para substituir a Azulinha, a Volvo 245; só lhe faltava falar, caraças – e não faço a menor ideia de quanto tempo precisarei, nem de quanto dinheiro que não tenho para gastar com a educação deste Cherokee teenager, nome e cor de xarroco. Verifiquei, surpreendido e simultaneamente incrédulo, que o arco à entrada da ponte sobre o Guadiana foi finalmente substituído por um fundo marítimo, mais cúmplice com o que encontrou quem sai do Algarve, do que o prepotente relvado que ali permaneceu dois anos, se não estou em erro, substituindo a discutível e crescente realidade dos campos de golfe por um interminável estádio de futebol a que parecem querer condicionar-nos; em cada casa e em cada carro, bandeiras ao vento. Mantendo a velocidade que me permite divagar sem perigo, cheguei a Huelva sem sobressaltos – além da habitual rajada de mensagens no telemóvel, onde o big brother, a pretexto de me fornecer não sei que espécie de informações não solicitadas, está pura e revoltantemente a controlar-me e a dizer «Com que então, em Espanha, seu maroto…» –, confirmando o preço mais baixo do gasóleo, e estacionei, como habitualmente, no parque Damas – embora duvide que se possa estabelecer qualquer analogia entre o nome da empresa de autocarros e o livro do Mário Zambujal, Primeiro as Damas –, depois de ter subido o silo até ao sexto piso, onde arrumei logo à primeira, sem me debater com a natural preguiça para fazer manobras. Enganei-me no elevador e saí para a rua do lado oposto à que me convinha e conduz directamente à Librería Saltés, parando primeiro numa loja de artigos fotográficos, onde também não tinham um rolo para a instamatic (quando precisei dela, verifiquei que a tinha deixado no jipe) e entrei na tabacaria ao lado onde, feitas as contas, poupei em dez onças de tabaco o suficiente para o parque de estacionamento e o almoço, a encaminhar-me determinado e transpirado para a livraria, a fumar o quarto e último cigarro enrolado no Parchal (bem me parecia que bastam quatro para fazer o percurso), onde entrei com o dedinho espetado que (sem dificuldade de monta) retirou do expositor o ambicionado Entre paréntesis de Bolaño, e aproveitei para encomendar La ciudad ausente de Piglia – evitando, assim, o confronto do Land-Rover com o trânsito sevilhano quando por lá passar a caminho de Jajouka –, garantindo à morenaça que me atendeu que não tinha pressa e pode comunicar a chegada durante o mês de Setembro, como prometeu. Livros para traduzir não me faltam, até Dezembro e, no intervalo, leitura de sobra por conta de Bolaño, como não tardaria a verificar. Saí para a rua ocupada por viveiros de pernocas douradas (claro que olhei) que mais pareciam apeadas de cartazes a anunciar as virtudes do ozono da Isla Canela, e sebes de pernões de moças da minha geração empoleiradas em cima de chinelas periclitantes e com aquele ar meio atarantado da menopausa, creio, e atalhando pela rua pedonal para não cair na tentação de me sentar numa esplanada a folhear o Bolaño, dirigi-me ao mercado por vielas coloridas, com os olhos a cobiçarem dois ocres revelados por uma demolição e a luz do meio-dia (hora de Portugal), e entrei no mercado pelo lado oposto ao habitual, dando rédea solta ao olfacto atordoado pela bordoada das frutas e dos legumes, os sacos de cominhos e açafrão, evitando as bancas de peixe vivo que não podia trazer, mas comprei lombos altos de bacalhau de fazer crescer água na boca, e estava com uma sede que nem vos conto, figos, pimentos e cebolinho a um euro o quilo, o tomate a sessenta cêntimos, saindo pela porta habitual para me sentar no Alba e poisar os sacos que me cortavam as mãos, enquanto pedia uma tapa de pescada frita fresquíssima, com um quarto de limão e meio litro de água, entretendo-me finalmente a abrir Entre paréntesis, lida a contracapa e escolhido o texto que dá o título ao livro, «El narrador en la intimidad», onde li «A minha forja [cocina, no original] literária é, frequentemente, uma divisão vazia, onde nem sequer há janelas. (…) Confrontado com estes dilemas, geralmente faço o que faz toda a gente: perco o equilíbrio e penso que sou imortal. Não quero dizer imortal literariamente falando, porque isto só pode sê-lo um imbecil e não sou homem para tanto, mas literalmente imortal, como os cães e as crianças e os bons cidadãos que ainda não adoeceram.» Saboreada a pescadinha, e porque o Alba faz questão de só servir café durante as horas que lhe justificam o nome, fui tomá-lo, servido num eterno copo de vidro, sentado à janela de um café decorado com cabeças de dois supostos Miuras e uma exposição antológica de cartazes de touradas, de Huelva e das redondezas, uns mais recentes e outros a tresandarem à Espanha do pós-guerra, onde fui abordado por dois ciganos muito interessados na minha caixa de enrolar cigarros, dizendo-me que era uma maravilha para enrolar porros, joé! (charros, não vá o leitor não saber), como quem diz, «E que tal uma troca?», mas o que eles sabem já eu me esqueci, e informei-os que as vendiam na tabacaria onde antes comprei o tabaco (saindo-me o parque de estacionamento e o almocinho de borla, mas creio já ter dito isto, desculpem), insistindo o mais teimoso – com o cabelo encaracolado à trolha (sem ofensa) a brilhar como se o tivesse penteado com azeite (de Jaén?) – em vender-me um espampanante cachucho dourado, ao que respondi esticando a singela anilha de prata que me caracteriza o dedo mindinho e, finalmente enrolados quatro cigarros (está mais que visto que são os necessários) e bebido o café, bebido o portuguesíssimo vício da bica, dirigi-me ao parque recusando-me terminantemente a ver a tal parede que só me apeteceu assinar, eu que raramente assino o que pinto, desci e abasteci o Xarroco na estação de serviço à saída de Huelva, decidido a chegar a casa e escrever este texto que transcrevo praticamente de cor.

Quando passei a ponte sobre o Guadiana, fui saudado pelo cartaz que anuncia o Algarve e, imediatamente a seguir, insultado pelo cartaz – primeiro os fogos, depois os projectos de prevenção e reflorestação – com que me entretive a calcular os milhares de euros gastos com a abertura do concurso, publicação, análise de propostas, impressão, distribuição e colocação, à medida que o mar, agora à minha esquerda, se apresentava mais baço e o piso da estrada mais trepidante, como se estivesse preocupado em despertar-me da modorra que se ia apoderando de mim, até que finalmente saí na rotunda de Alcantarilha, aquela que normalmente uso e está visto que devo usar sempre, e parei lá em baixo, no poço, para abrir a caixa do correio – onde me esperava um livrinho (mais uma tradução, mas do mal o menos) –, subi todo contente a pequena colina até ao Monte Alto e arrumei o jipe sob o coberto das buganvílias sem que os canitos dessem por mim, até chegar à porta e saltarem-me em cima como se não me vissem há uma eternidade, e satisfeitas as merecidas e devidas atenções e mudada a água dos bebedouros, arrumei rapidamente as compras, decidido a fazer uma surpresa à Olga quando chegar a casa, com um jantarinho debaixo do telheiro para lhe contar ainda mais histórias, absolutamente convicto de que, embora hoje não tenha traduzido a ponta de um corno (também preciso de descansar de vez em quando), sinto-me absolutamente convicto de que hoje, finalmente, fiz a coisa como deve ser feita.

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