20 de maio de 2013

Nem sempre a lápis (369)

até Jajouka
(2006)
29. Gostava que este livro, se vier a ser um livro, soubesse a pão e a sal, a peixe frito e a harira, a água fresca e a chá, que as páginas ofuscassem como a prata do mar de Asilah e a luminosidade dos cerros do Rif, cegassem como os campos do baixo, em Agosto, e acendessem trilhos na baía como a Lua Cheia na Fortaleza; fossem impressas a buril nas encostas xistosas das Laceiras e apagadas pelos cascos do gado afugentado por um velho Land-Rover; falassem várias línguas comuns, sem idade nem sotaques, apátridas e abrangentes, que nelas se ouvissem várias vozes numa só voz e ribombassem as trovoadas secas de Maio e de Setembro e os relâmpagos iluminassem as páginas de um rosto apresentado como figura tutelar e exemplar, sem exigências nem cedências recíprocas; fossem rasgadas pelo estertor primário da matança de um porco numa aldeia de Mortágua, pela sinfonia da água a correr de um bica de metal para uma pia de granito, em Salgueirais, pelo silêncio frio da serra do Caramulo e pelo silêncio calcinado dos cerros algarvios; fossem interrompidas pelo canto das popas e abelharucos, riscadas pelo voo rápido das andorinhas, mas sustentando bem alto um predador atento ao mínimo movimento da presa que se protege da canícula; gostava que nelas fumegassem fogareiros de barro e lareiras de sobro e de giesta, cheirassem a forragem segada e a tagine, a chuva e a cães molhados regressados da caça, a pomares devassados pelas abelhas e a vinhas vindimadas, como cheira o teu cabelo quando sais do mar.
Gostava que este livro, se tiver de ser um livro, ao folheá-lo sentisse o toque da tua pele e ouvisse a tua respiração enquanto dormes; permanecesse secreto e inacabado, escrito e reescrito como o livro que me recuso a escrever, onde não houvesse lugar para lugares-comuns e, à falta de melhor, o silêncio se impusesse à previsível conclusão de cada período; fosse um palimpsesto onde latejam outras páginas, em branco e decifráveis, sobrepostas como sucessivas camadas de cal dos montes do Sul e as escamas de ardósia dos derradeiros telhados da Beira, comunicativas e arejadas como açoteias de Tânger e de Asilah; memória amnésica, fronteira de fronteiras derrubadas.

30. (de Setembro)
Já arrumei a mochila e atestei o Land-Rover. Esta madrugada arranco até Jajouka.
[até Jajouka, Monte Alto / Mortágua | Maio / Setembro de 2006]

Sem comentários: