«Foi numa época em que ser autêntico era importante para as pessoas. É interessante como as coisas que parecem óbvias e fazem até parte da atmosfera de uma certa época se tornam inacreditáveis mais tarde – hoje, parece que uma coisa ou uma pessoa pode ser descaradamente falsa que ninguém se importa.
Esta manhã encontrei no frigorífico as uvas que comprei há uns dias, como penso que referi e das quais nunca mais me lembrei, enrugadas mas, de resto, intactas, e comi o saco todo enquanto fazia as palavras cruzadas que trouxe do Starbucks. Não consegui descobrir todas as palavras. Houve tempos em que era frequente conseguir descobrir todas as palavras, mas isso é impossível agora que a maioria se refere a programas de televisão e celebridades que só as pessoas que vêem televisão conhecem – as pessoas que vêem muita televisão, dá-me ideia. Até as palavras cruzadas do New York Times ficaram assim, indecifráveis para pessoas como eu, pessoas com formação literária que não têm televisão. Agora que penso no assunto, suponho que seja esse o motivo. Não me dei ao trabalho de escrever a habitual nota no jornal no outro dia, a avisar que o problema de palavras cruzadas tinha sido arrancado: não sinto qualquer afinidade com o tipo de pessoas que conseguem resolver problemas de palavras cruzadas hoje em dia. Olho para os problemas e para as pessoas, no café, especadas a olhar para os computadores que estão em cima das mesas à sua frente, e pergunto-me, quem são estas pessoas?»
[Sam Savage, As recordações de Edna; trad. Sofia Gomes, Planeta, Janeiro 2013]
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