25 de outubro de 2013

Papiro do dia (405)

«A cidade cerca-nos, com os seus muitos braços, os seus muitos círculos, nenhum dos quais nos exclui. Ninguém nos pode tirar essa sensação de pertencer, de estar contido. Somos parte de um todo, uma cidade viva. Algures os barcos passam, entram no porto ou partem. Na praia as crianças brincam, os fatos de banho serão manchas claras ao sol. Haverá barcos de recreio mais ao longe e saindo a barra paquetes, vapores transatlânticos. Abarcar-se-á tudo isso de um ponto alto, de um mirante, ou mesmo a partir de uma pérgola florida.
Nada vejo, aqui sentada diante da mesa redonda do café, e no entanto essas coisas longínquas, como os barcos passando, o movimento dos barcos, fazem parte deste minuto, em que tudo está contido. Rodo a colher no gelado, levo-a devagar à boca. Creme vermelho, de groselha, derretendo. Sabor de Verão. Mais alto, contra o céu, balançarão as acácias. O que penso não tem nitidez, é talvez só uma precisão inexacta. A vida cabe numa colher de gelado, respira-se, devora-se com a boca.
Tudo acontece agora muito devagar, os barcos têm todo o tempo para partir ou para entrar no porto, as crianças riem, de puro prazer de brincar nas ondas. Devagar, devagar. O tempo é um hálito, um sopro.»
[Teolinda Gersão, A árvore das palavras; Sextante, 6.ª ed., Maio 2008;
boca]

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