«Se querem realmente saber, eu preferia nunca ter nascido. A vida, acho-a muito fatigante. Claro, a coisa agora está feita e já nada posso alterar. Mas haverá sempre no fundo de mim mesmo esse remorso, que não chegarei a expulsar completamente e há-de estragar tudo. Agora trata-se de envelhecer depressa, de devorar os anos o mais rápido possível, sem olhar nem para a esquerda nem para a direita. É preciso suportar todas as mordidelas da existência, procurando não sofrer demasiado. A vida está cheia de loucuras. Não passam de pequenas loucuras quotidianas, mas são terríveis se repararmos bem nelas.
Não acredito muito nos grandes sentimentos. Em vez deles, vejo um exército de insectos ou de formigas que mordem em todos os sentidos. Por vezes, estas minúsculas flechas negras reúnem-se, e a razão dos homens perde o equilíbrio. Durante alguns minutos, algumas horas, é o reino do caos, da aventura. A febre, a dor, a fadiga, o sono que chega, são paixões fortes e tão desesperantes como o amor, a tortura, o ódio ou a morte. Outras vezes, o espírito assaltado pelas sensações sucumbe numa espécie de êxtase material. A imagem da verdade é mais ofuscante que um protector.»
[J.-M. G. Le Clézio, A febre; trad. Liberto Cruz, Ulisseia, Novembro 2008]
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