25 de outubro de 2013

Nem sempre a lápis (445)

Memória descritiva
Cachimbo
 
Comprei-o à socapa na Feira de S. Mateus, com o dinheiro que o meu avô me tinha dado para os carroceis.
Teria talvez uns 13 anos, era outra vez Setembro, e íamos às botas.
Durante anos a fio, o meu pai não encontrou melhor pretexto para nos refastelarmos com umas fiadas de enguias de escabeche.
Das de Aveiro.
Das genuínas.
Mumificadas numa barriquinha de madeira.
Sentia-lhes o cheiro a quilómetros, ou até meses, entre o travo acidulado do vinagre e o calor da folha de louro.
Entretanto, a acolhedora barrica cedeu lugar a um invólucro asséptico - suponho que ecologicamente correcto e europeu - com a memória das aduelas de madeira serigrafada.
Em contrapartida, a minha mãe sentia-se no direito de lambuzar os lábios e os dedos de açúcar e canela, junto às crepitantes frigideiras das farturas.
Durante anos assisti à irremediável comparação dos preços, entre dentadas de farturas, e a destreza com que deixávamos a espinha inteira no prato.
Enquanto isso, os nossos pés mediam forças com a forma das botas, que só levavam a melhor até chegarmos ao pátio.
E até ao primeiro dia de escola.
Hoje tenho mais de uma centena de cachimbos, entre sarrafos baratos e dispendiosos objectos de colecção.
Mas a melhor cachimbada, ainda é a que me recorda o sabor daquele sarrafinho comprado em Viseu, atestado de mata-ratos.
E já me apanhei a ir lavar a gordura dos dedos, ou a sacudir o açúcar dos lábios.

2 comentários:

Maria Eu disse...

Veio-me o cheiro e o sabor das farturas compradas nas festas populares e, sim, também lambi os lábios com açúcar e canela! :))

fallorca disse...

Sirva-se :)