«Antes de começar
Diz o Acto dos Apóstolos: “susceperunt verbum cum omni aviditate”, ou seja, perscrutaram as palavras com toda a avidez. Como um operário da palavra, que é o meu utensílio, a minha pá, a minha enxada, procurei sempre identificar-me com a sua lógica interna como um motorista deve saber que regras determinam o funcionamento dos cavalos-vapor, da marmita de Papin aos mecanismos computorizados, dos foguetões à energia nuclear do engenheiro von Braun.
Seria fascinante saber-se porque se designa um certo animal como cão, uma peça de mobiliário por cadeira, uma determinada árvore por pinheiro. Seria preciso percorrer todo o passado das palavras até ao velhíssimo pai Adão, que teve o direito de nomear as coisas. Nomear é, de resto, possuir essas mesmas coisas. Quando se grita: “Oh Joaquim!”, o Joaquim pára na rua possuído pela nossa nomeação.
Mais grave é tentar descobrir o autêntico nome de Deus, o que seria equivalente a possuir-lhe os segredos ocultos, a conseguir o conhecimento total. É uma situsção tão séria que o e=mc2 de Einstein (que se aproxima do conhecimento total) serviu para criar a bomba atómica, da mesma maneira que a construção da Torre de Babel se acabou pela destruição de um possível entendimento entre os homens.
Este livro não pretende ser um tratado de semântica – que se deixa para os peritos – mas sim uma orquestração sobre a simbologia da palavra, embora lhe sobre um pouco de didatismo menos intencional.
Que é um palavra, até mesmo, que é uma letra? Porque, na verdade, se pode ir ainda mais longe.
“As letras, segundo o zohar (um medieval tratado da Cabala) revelam, pela sua forma, um ensinamento. São o símbolo de todo o universo”. De acordo com a mesma fonte “compareceram diante do Senhor para reivindicarem a honra de começar a criação do mundo.”
No que a Cabala concorda com o Evangelho de João, onde explicitamente se informa que “ao princípio era o verbo”.
De qualquer maneira, “as letras fechadas e misteriosas aguardam a interpretação dos iniciados para desvendar os seus segredos”. A gruta de Ali-Babá só pode abrir-se porque o mercador babilónico sabe a chave do segredo. Se não referisse a palavra mágica “sésamo”, a gruta ficaria para sempre ignorada.
Há um mundo de palavras e estas (por vezes a sua representação escrita) têm uma função a cumprir. O gólem é uma estátua que, em período de êxtase, uma rabi pode animar (dar-lhe vida) escrevendo-lhe na testa emet (a realidade, a verdade). Mas quando se lhe apaga a primeira letra, a palavra passa a significar morte e o gólem desfaz-se em poeira.
A palavra serve para o homem se entender, mas também para se confundir, como acontece, pelo menos desde os tempos da Torre de Babel. “Separam as águas de cima das águas de baixo. São a separação entre o fundamento masculino e o fundamento feminino.”
Mas a velha China afirma que as palavras só têm um valor sugestivo porque contêm, não a verdade, mas apenas alusões mais ou menos veladas.
Este livro não pretende ir tão longe em caminhos assim fascinantes. Fica-se, reverente e parcamente, por pequenas escavações na epiderme da língua portuguesa, sem a esperança de que este verbo próprio possa desencadear cabalísticas metamorfoses a não ser talvez um possível maior amor por aquilo que mais directamente interliga os homens: a sua capacidade de utilizar inteligentemente as palavras.»
[Roby Amorim, Elucidário de Conhecimentos (quase) inúteis; Edições Salamandra, 2.ª ed. revista e ampliada, Julho 1985]
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