5 de agosto de 2011

«É bom trabalhar nas Obras» (96)

«Enquanto entrava no automóvel, levando de volta o vídeo que seria a primeira emissão da campanha do "Não", Bettini duvidou se iria conseguir coordenar bem os movimentos. Os copos a mais, não eram nada comparados com o sismo que lhe percorria o corpo. Com que então, os comissários políticos achavam que a sua campanha era inofensiva, um simpático comentário de nota de rodapé, uma mosquinha morta, um chazinho deslavado de anciã.
Todas as noites de insónia e de fúria contra o piano para parir "alegria", conduziram apenas a sorrisos irónicos dos homens que o tinham contratado.
Se o super-inimigo ministro do Interior conseguiu que lhe partissem a clavícula, os seus próprios clientes tinham-lhe partido a alma.
Sentiu um soluço no estômago. Os olhos inchados. A morrinha era o cão fiel acompanhante dos mendigos. Condoeu-se de si. Abraçou-se à sua auto-compaixão.
Este "Não", que seria o seu reencontro com a criação, começava a ser uma carta de despedida. O pai tinha-lhe ensinado a não depositar demasiadas esperanças em nada, a não fazer depender a vida actual do eventual resultado de alguma iniciativa. "Pensa sempre que vais perder." Uma filosofia completamente alheia à praticada pela sua mulher Magdalena e as suas amigas: conselhos para beneficiar a digestão, auto-ajuda, budismo na vida quotidiana, zen para aqui, zen para ali. Se tivermos maus pensamentos, convocamos a sua realização. Se tivermos pensamentos positivos, a felicidade vem ter connosco a abanar o rabinho. Tinha acreditado no fucking "Não", como no anjo-da-guarda quando era criança. Delegou nele a sua protecção, os seus anseios. Tinha ido contra a sensatez e a certeza de que, desta vez, David não ia vencer Golias. Que a poesia não tinha sequer a força do pulmão de um canário para incomodar o papão.
O pensar poético de Magdalena era puro whisful thinking. Tudo o que a vaga da ditadura tinha lançado sobre os roqueiros e as praias, não passava de detritos de naufrágios: Raúl Alarcón e o seu partner Strauss, Olwyn, convencido pela sua boa-fé de que poderia vir a ser o rei da liberdade, e o seu sonho – aquele arco-íris caído do céu – era a premonição de um cataclismo e não um hino de vitória.
Pôs a chave na ignição do carro e sentiu que o gás do tubo de escape entrava no habitáculo por algum dos vários orifícios da sua antiga carroçaria. O cheiro a Santiago estava ali, um animalejo indefinido a duplicar-se na morrinha, animado pelos faróis dos carros que avançavam com dificuldade à hora de ponta, a morder os pneus recauchutados até à ignomínia.
Não tardaria a Primavera, mas não a dos poetas. A maldita Primavera da canção na rádio.»

[Antonio Skarmeta, Os dias do arco-íris; em tradução para a Teodolito;

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