9 de agosto de 2011

Papiro do dia (113)

«Ah, as vésperas dissonantes que as quinquilharias do bufarinheiro repicam através do longo crepúsculo e sobre a estrada florestal sarapintada, ele vergado e acossado ao percorrer os recrementos ventosos do dia, dir-se-ia um daqueles vetustos exilados que, divorciados da corporalidade e ante a defensão de ingressar no Paraíso ou no Inferno, vagueiam para todo o sempre nas caóticas extensões intermédias, sem rumo, incriados alvo de anátema. Acossados pela amargura, pela culpa, ou, como no caso deste sombrio vendedor ambulante, perseguidos sem descanso através de florestas e pauis pelos clamores dos seus próprios artefactos rabugentos e inconsoláveis, numa sempiterna maldição metálica.
Chegado à clareira, pousou os varais da carroça e contornou os vestígios de uma fogueira do seio da qual assomava uma esguia haste de fumo, semelhante ao pistilo de uma flor queimada, com o fino nariz franzido e olhos cautelosos. Os contornos de homens que ali tinham dormido recortavam-se na erva calcada e empeçonhada. Ele pôs o menino no chão e apanhou lenha e tornou a atear o lume. As trevas tombaram e os morcegos vieram caçar no aceiro, voando para trás e para diante como pequenas almas sem voz acima da silhueta ali cabisbaixa, de ar soturno, apoiada nas canelas magras. Depois foram-se embora. Uma raposa parou de regougar. O bufarinheiro, envolto na sua manta roída das traças, cabeceava. O menino dormia.
Os três homens, ao surgirem, quase pareceram ter assomado da terra. O bufarinheiro não foi capaz de explicar aquela aparição. Reuniram-se em volta do fogo e olharam-no de alto. Um deles trazia uma espingarda e sorriu. Viva, saudou o bufarinheiro.»

[Cormac McCarthy, Nas Trevas Exteriores; trad. Paulo Faria, Relógio D’Água, Junho 2011;
quinquilharia]

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