7 de agosto de 2011

Papiro do dia (112)

«Ela não sabia que ia partir. Acordou de noite e levantou-se da cama, quase em êxtase, e começou a vestir-se, sempre nas trevas e com gestos graves. Talvez um sonho a tivesse impelido a agir assim. Tirou os seus poucos haveres do roupeiro-cómoda e enrolou-os numa trouxa e saiu para o patamar diante da porta do quarto. Ficou à escuta da respiração dele no quarto em frente, mas nada conseguiu ouvir. Agachou-se no escuro durante muito, muito tempo, com medo de que ele estivesse acordado, e quando se decidiu a descer as escadas de pés descalços deteve-se novamente na base dos degraus, num vestíbulo negro e sem vida, e apurou o ouvido, atenta a qualquer som vindo do alto da escada. E aguardou de novo junto à porta da frente, com esta já aberta, suspensa entre as fauces da casa morta e sem amor e as trevas exteriores, qual ladrão frágil. O ar estava húmido e frio, e ela ouvia os primeiros galos a cantar. Fechou a porta e desceu o carreiro até à cancela e saiu para a estrada, percorrida por calafrios à gélida luz das estrelas, sob vega e a hidra.
Caminhou para oeste pela estrada enquanto o céu se ia tornando mais pálido e o mundo das formas a despertar crescia gradualmente à sua volta. Precipitando-se assim, com o nascer do Sol nas suas costas, tinha a aparência de uma refugiada daquele acontecimento, transtornada pelo alvorecer. Ainda não se tinha afastara muito quando ouviu um cavalo na estrada atrás de si e fugiu para o seio do bosque, com o coração nas mãos. O animal irrompeu do sol num galope vagaroso, uma silhueta torturada de contornos liquefeitos. Ela agachou-se nos arbustos e observou-o, um enorme cavalo a emergir, cauterizado e ileso, do olho do Sol, para depois passar como uma caravela naufragada, de costelas descarnadas e negro e louco, com a sela esfiampada e os estribos a baloiçar e os cascos a ressoar suavemente na poeira e assim passou, enorme e esquelético e esbraseado, e o som do seu passo dissipou-se estrada fora até só restar o eco distante de aplausos num salão para sempre vazio.»

[Cormac McCarthy, Nas Trevas Exteriores; trad. Paulo Faria, Relógio D’Água, Junho 2011;
olho do Sol]

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