31 de agosto de 2011

Papiro do dia (121)

«A história estética do século XX literário é a de um livro impossível de escrever e culmina nas vésperas da Segunda Guerra Mundial, no momento em que Joyce pôs ponto “final” (coisa que não existe) na empresa louca que fora Finnegans Wake. Mas a embarcação foi prosseguindo a sua rota e Finnegans Wake parece, olhado de agora, um daqueles vulcões solitários que desaparecem no horizonte. Que teria Joyce pensado das combinatórias do tão vasto jogo da Internet? A realidade de que foi o demiurgo ao dar-lhe uma forma (a do “andolitá” combinada com o fluir do rio Leffey) tornou-se o caos que é o nosso ambiente. Nunca tinha acontecido que as condições para se adquirir o saber passassem a ser tão acessíveis e nunca acontecera que a possibilidade de fazer delas uma arte fosse tão improvável. O que nos falta é paciência e silêncio; o que nos falta é pura e simplesmente tempo, o que também quer dizer aborrecimento. George Steiner di-lo com toda a clareza: qual será o efeito desta realidade da leitura, na função dos livros tais como os conhecemos e amámos? É já possível constatá-lo, reparando no efeito de exotismo cada vez mais estranho suscitado pelo acto silencioso da leitura, o espanto provocado pela decisão de fulano de tal de ficar fechado em casa durante três dias para escrever. Hoje em dia, a coisa mais extraordinária seria o espectáculo de um rapazinho correndo a refugiar-se na sombra de uma cabana munido do livro que está a ler. Ao rapazinho dos nossos dias nem sequer lhe passa pela cabeça entrar no quarto para devanear, abrir um romance numa página qualquer e deixar-se hipnotizar pelo mistério dos caracteres. Estão à espera dele em toda a parte, a tribo chama por ele sem parar, na lição de judo ou de viola, no clube de teatro e até na biblioteca! A experiência da solidão, do olhar fixado na janela por cima dos telhados, a experiência dessa tão estranha e doce tristeza que se esconde no fundo de cada livro como uma luz feita de sombras, essa experiência fundamental que é, afinal, a iniciação ao mundo e à finitude, essa experiência é quase impossível, proibida, até. E em tal caso vejo-me obrigado a falar de “ódio”.»
[George Steiner, O Silêncio dos Livros (seguido de Esse vício ainda impune, de Michel Crépu); trad. Margarida Sérvulo Correia, Gradiva, Junho 2007;

1 comentário:

Anónimo disse...

Teria ele me pensado, apesar do tão vasto jogo da Internet?
A experiência dessa tão estranha e doce tristeza que se esconde no fundo de cada livro como uma luz feita de sombras?
Ah, sei bem o que é isso, Joyce.