«Temos tendência a esquecer que, por serem altamente vulneráveis, os livros podem ser suprimidos ou destruídos. Como as demais produções humanas, os livros são portadores de uma história, história essa cujos primórdios continham já em germe a possibilidade ou a eventualidade de um fim.
Pouco sabemos acerca desses primeiros passos. Na China, textos de natureza ritual ou didáctica remontam com certeza ao segundo milénio anterior à nossa era. Quer os escritos administrativos e comerciais produzidos na Suméria, quer os proto-alfabetos e alfabetos nascidos no Mediterrâneo oriental são testemunhos de uma evolução complexa, cuja cronologia rigorosa ainda está por determinar. Na nossa tradição ocidental, os primeiros “livros” foram tabuinhas de leis, registos comerciais, prescrições médicas, ou previsões astronómicas. As crónicas historiográficas, intimamente associadas a um tipo de arquitectura triunfalista e a comemorações de vingança, precederam, com toda a certeza, tudo aquilo a que chamamos “literatura”; ou seja, a epopeia de Gilgamesh, já que os mais antigos fragmentos datados da Bíblia dos Hebreus são tardios, muito mais próximos do Ulisses de James Joyce do que das suas próprias origens, que se relacionam com o canto arcaico e a narrativa oral.
A escrita constitui um arquipélago na imensidade oceânica da oralidade humana. A escrita – e não vale a pena determo-nos nos diferentes formatos que o livro foi assumindo – configura um caso à parte, uma técnica específica entre um todo semiótico maioritariamente oral. Milhares de anos antes do processo de desenvolvimento das fórmulas escritas já se contavam histórias, já se transmitiam por via oral ensinamentos de carácter religioso e mágico, já se compunham e se transmitiam fórmulas encantatórias de amor, ou então anátemas. Chegou até nós, alheia a toda e qualquer forma de alfabetização, uma multidão de sonoridades vindas de comunidades étnicas primitivas, de mitologias elaboradas, de saberes tradicionais relativos à natureza. Não existe neste planeta um único ser humano que não mantenha com a música um qualquer tipo de relação. A música, sob a forma do canto ou da execução instrumental, parece ser de facto universal. É a linguagem fundamental para comunicar sentimentos e significações. A maior parte das pessoas não lê livros. Porém, canta e dança.»
[George Steiner, O Silêncio dos Livros (seguido de Esse vício ainda impune, de Michel Crépu; trad. Margarida Sérvulo Correia, Gradiva, Junho 2007]
1 comentário:
muito muito muito
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