24 de maio de 2010

«É bom trabalhar nas Obras» (12)

«Na manhã seguinte, a senhora Margarita disse-me, por telefone: “Rogo-lhe que vá a Buenos Aires por uns dias; vou mandar limpar a casa e não quero que o senhor me veja sem a água”. Depois indicou-me um hotel onde devia ir. Receberia ali o aviso para voltar.
O convite para sair de sua casa fez disparar em mim uma mola ciumenta e no momento de partir dei-me conta de que, apesar da minha excitação, levava comigo um invólucro pesado de tristeza e que assim que me tranquilizasse teria a estúpida necessidade de desenvolvê-lo e examiná-lo cuidadosamente. Isso aconteceu pouco depois, e quando apanhei o comboio tinha poucas esperanças que a senhora Margarita me quisesse, como seriam as dela quando apanhou aquele comboio sem saber se o seu marido ainda era vivo. Agora eram outros tempos e outros comboios; mas o meu desejo de ter algo em comum com ela fazia-me pensar: “Os dois tivemos angústias por entre ruídos de rodas de comboios”. Mas esta coincidência era tão pobre como a de ter acertado só num número dos que tivesse um bilhete premiado. Eu não tinha a virtude da senhora Margarita para encontrar uma água milagrosa, nem procuraria consolo em nenhuma religião. Na noite anterior tinha atraiçoado os meus próprios fiéis, porque embora eles quisessem levar-me com a primeira senhora Margarita, eu tinha, também, no fundo do meu pântano, outros fiéis que olhavam fixamente para esta senhora como bichos encantados pela lua. A minha tristeza era preguiçosa, mas vivia na minha imaginação com orgulho de poeta incompreendido. Eu era um lugar provisório onde se encontravam todos os meus antepassados um momento antes de chegar aos meus filhos; mas os meus avós, embora fossem diferentes e com grandes inimizades, não queriam lutar enquanto passavam pela minha vida: preferiam o descanso, entregar-se à preguiça e desencontrarem-se como sonâmbulos a caminharem por sonos diferentes. Eu procurava não provocá-los, mas se isso chegasse a ocorrer preferiria que a luta fosse curta e que se exterminassem com uma só pancada.»
[Felisberto Hernández, Contos Reunidos; em tradução para a Colecção Ovelha Negra / Oficina do Livro]

Sem comentários: