24 de maio de 2010

À mão de ler (27)

«Montpellier, 7 de Setembro de 1949 - É preciso reconhecer que passados os Pirenéus o ar é mais leve, a terra mais fecunda, a paisagem mais doce. Mas eu prefiro o pesadelo, a agressividade do outro lado. Aquela Benemérita do Lorca, tricórnea e sinistra, e aquelas azémolas lazarentas a erguer pó nos restolhos, dizem-me coisas que estes palacianos polícias e estes percherons anafados me não dizem. Há uma grandeza que se não mede em calorias e salamaleques. É coisa mais profunda e significativa... Ora essa grandeza tem-na a Espanha, faminta, esfarrapada, a arder em febre desde que nasceu. Pudesse ela suportar o complexo de inferioridade que lhe consome as forças com gestos de obstinação! O guarda da aduana francesa, a olhar o colega castelhano, parecia Descartes a contemplar um bisonte. E o outro era o Cervantes...»
[Miguel Torga, Diário V (ed. revista); Coimbra 1974]

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