31 de dezembro de 2010
30 de dezembro de 2010
Às vezes, lá calha...
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«Alto! Façamos uma pausa de conveniência. Os escritores que entendem do seu ofício levam-no com toda a calma que é possível. Pois escrever constantemente fatiga tanto como o trabalho da terra.»
Nem sempre a lápis (115)
Fiquei deslumbrado com a porta do teu quarto. Tacteei a cor, tentei perceber a técnica; directa e no lugar. Apeteceu-me «assiná-la»; talvez te tenhas lembrado do que me tens ouvido assinar, ao dizê-lo. Mas o Sol foi pouco para a poder ver e na última noite, subi os degraus às escuras – impelido pela memória –, esquecido que mandaste fazer o que esteve sempre em falta.
Papiro do dia (17)
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Arturo Bandini, o romancista. A viver do seu trabalho como escritor. A preparar um novo livro. Um livro formidável. As primeiras críticas são excelentes. Uma prosa notável. Desde Joyce que não se via nada semelhante.»
[John Fante, Pergunta Ao Pó; trad. Rui Pires Cabral, Ahab, Outubro 2010;
28 de dezembro de 2010
Às vezes, lá calha...
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Nem sempre a lápis (114)
Papiro do dia (16)
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Qualquer coisa ofegante, frenética, infindável, qualquer coisa que seria grandiosa, que não se detinha, martelei as teclas durante horas, até que aos poucos desceu sobre mim fisicamente, dominou-me, entranhou-se-me nos ossos, encharcou-me, esgotou-me, cegou-me. Camilla! Camilla tinha de ser minha! Levantei-me, saí do hotel e desci Bunker Hill em direcção ao Columbia Buffet.
- Outra vez por cá?
Como uma película sobre os olhos, como uma teia de aranha que me cobrisse por inteiro.
- Porque não?»
[John Fante, Pergunta Ao Pó; trad. Rui Pires Cabral, Ahab, Porto, Outubro 2010;
24 de dezembro de 2010
23 de dezembro de 2010
22 de dezembro de 2010
Nem sempre a lápis (113)
Papiro do dia (15)
«ÉVORAMONTE, 24DEZ74
O natal. O natal é a estação do ano mais bonita. Da que eu gosto mais. No natal tem frio, amizade... Eu gosto muito do natal. No natal tenho medo. O sol é que tem a culpa. Eu não. Nem as flores do natal, assim. Come-se. No natal há: chá bagaço pãozinho quente açorda erva manteiga tambores viski lenha papagaio água vela rádio marrueco alecrim almofada chuva vento ácido tesão gasolina chouriço costela de porco brazinhas a arder flauta pirum (falam) esquentamento sinos no castelo amizade e muito calor. Eu acho que é a estação mais quente do ano. Você acha que não? Também acho que V. acha que não. É a estação do ano mais verde, o natal. A gente fuma fuma fuma à lareira e põe a perna no tesão. À procura da perna. No natal eu sinto uma coisa a roer cá por dentro de tanto amor. Eu gosto muito do natal, das pessoas do natal - eu gosto muito de boa vontade. Aos homes. À lareira na terra.»
20 de dezembro de 2010
Às vezes, lá calha...
«Ele leva livros para uma barraca, depois das dez da noite. Fica encantado com a solidão e o silêncio entre o cheiro a madeira. Uma noite, deu um salto por cima dos livros porque tocou o telefone; a que se tinha enganado no número, continuou a enganar-se todas as noites; e ele, apenas lhe toca com os ouvidos e as intenções.»
Nem sempre a lápis (112)
A luz faltou às sete e um quarto da tarde. Confirmei as horas no telemóvel para ver quantos minutos terei perdido da página e meia do final da revisão de Contos Reunidos. Começou a falhar, a ter quebras bruscas, mais ao fim do dia; fartou-se de avisar que não estava a brincar aos presépios e fui gravando a atenção. Refeito da surpresa de me ver às escuras, levantei-me e fiz o que é hábito neste tipo de circunstâncias; abri a porta para confirmar que havia luz nas escadas, com ela verifiquei o quadro do contador, fui buscar uma cadeira para ver o do prédio, surpreendido com a luminosidade debaixo da porta do direito. No frente, ao meu lado, nem sinais de vida. Enquanto apertava os parafusos da tampa do contador do prédio e pegava na cadeira, com ar comprometido sem saber porquê, ouvi vozes a aproximarem-se pela escada; compreendi que a luz era só para alguns, mas o elevador não estava para ninguém. A trombose paralisou, deixou todo o lado esquerdo e frente do prédio tolhido. Subi à vizinha de cima – já tive a oportunidade de a ajudar a tirar uma peça íntima de cima da minha roupa – e confirmou-me que também estava às escuras; lembrei-me das cuecas. Como fico sem telefone quando falta a luz, numa nova incursão disse-me que já tinha telefonado para a EDP e só desta vez é que percebi que tem um cão; estão explicadas as recentes alterações na rotina dos barulhos, quando leio na cama. Deitei-me no silêncio da escuridão do quarto, interrompido por vozes que distribuíam informação a quem, como eu, as ouvia ofegantes atrás da porta. Imagino os capítulos que perdi até as vozes do décimo andar entrarem em casa com o último; cada uma a reeditá-los, revistos até ao esquecimento.
«É bom trabalhar nas Obras» (60)
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«Obrigado ou atraiçoado por mim mesmo a dizer como faço os meus contos, recorrerei a explicações que lhes são exteriores. Não são completamente naturais, no sentido de não intervir a consciência. Isso ser-me-ia antipático. Não são dominados por uma teoria da consciência. Isto ser-me-ia extremamente antipático. Preferiria dizer que essa intervenção é misteriosa. Os meus contos não têm estruturas lógicas. Apesar da vigilância constante e rigorosa da consciência, também ela me é desconhecida. Num determinado momento, penso que num recanto de mim nascerá uma planta. Começo a espreitá-la acreditando que nesse recanto se produziu algo estranho, mas que poderia ter um amanhã artístico. Seria feliz se esta ideia não fracassasse de todo. No entanto, devo esperar um tempo ignorado: não sei como fazer germinar a planta, nem como favorecer, nem cuidar do seu crescimento; apenas pressinto ou desejo que tenha folhas de poesia; ou algo que se transforme em poesia quando olhada por certos olhos. Devo procurar que não ocupe muito espaço, que não pretenda ser bela ou intensa, mas que seja a planta que ela mesma esteja destinada a ser, e ajudá-la a que o seja. Ao mesmo tempo, ela crescerá de acordo com um contemplador a quem não ligará muita importância se ele lhe quiser sugerir demasiadas intenções ou grandezas. Se é uma planta dona de si mesma terá uma poesia natural, desconhecida por ela própria. Ela deve ser como uma pessoa que não sabe quanto irá viver, com necessidades próprias, com um orgulho discreto, um pouco torpe e que pareça improvisado. Ela própria não conhecerá as suas leis, embora profundamente as tenha e a consciência não as alcance. Não saberá o nível e a maneira como a consciência irá intervir, mas em última instância, imporá a sua vontade. E ensinará a consciência a ser desinteressada.
Na verdade, eu não sei como faço os meus contos, porque cada um deles tem a sua vida estranha e própria. Mas também sei que vivem em luta com a consciência, para evitar os estrangeiros que ela lhes recomenda.»
[Felisberto Hernández, Contos Reunidos; em revisão final para a Colecção Ovelha Negra / Oficina do Livro;
19 de dezembro de 2010
18 de dezembro de 2010
Às vezes, lá calha...
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Celebraram-se hoje trinta e nove anos que me casei a primeira vez; lembro-me sempre, na boa. A Nico convidou-me para passar o Natal em casa dela, no Monte Alto; e eu aceitei, cheio de curiosidade.
«É bom trabalhar nas Obras» (59)
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[Felisberto Hernández, Contos Reunidos; em revisão final para a Colecção Ovelha Negra / Oficina do Livro;
Papiro do dia (14)
«despi devagar o calor de dizer o teu nome
no silêncio do quarto
o aconchego de se ainda voltasses
abre-se em palavras surdas
depois de improviso percorro a solidão
ao espelho
como se, ao olhar muito, te visse
preso na pele dos dedos
inacabado e à deriva nos meus olhos»
[Maria Sousa, Exercícios para endurecimento de lágrimas, Língua Morta, Dezembro 2010;
refresco de Inês Veiga]
16 de dezembro de 2010
«É bom trabalhar nas Obras» (58)
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Uma tarde comecei a imaginar o que aconteceria se eu acariciasse um braço à minha mestra e estive muito perto de fazê-lo; mas depois pensei que teria sido mais fácil ensaiar uma luta com os punhos do que acariciar a mestra com os dedos.»
[Felisberto Hernández, Contos Reunidos; em revisão final para a Colecção Ovelha Negra / Oficina do Livro]
Papiro do dia (13)
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Não me lembro do que fiz a seguir. Talvez tenha ido visitar o Benny Cohen, que vivia num quarto por cima do Grande Mercado. O Benny tinha uma perna de pau com uma portinhola, onde guardava cigarros de marijuana. Vendia-os a quinze cêntimos cada um. Vendia também jornais, o Examiner e o Times. No quarto de Benny havia pilhas de exemplares da The New Masses. É possível que dessa vez, como de costume, ele me tenha angustiado com a sua negra e terrível visão do mundo futuro. Talvez me tenha admoestado, agitando sob o meu nariz os dedos manchados, por eu ter traído as minhas origens proletárias. Talvez, como de costume, eu tenha saído de lá a ferver de indignação, descendo as escadas poeirentas até ao nevoeiro da rua, cheio de vontade de esganar um imperialista. Talvez sim ou talvez não; não me recordo.
Dirigi-me ao Bairro Mexicano com uma sensação de náusea sem sofrimento. Eis a Igreja da Nossa Senhora, muito antiga, o adobe das paredes enegrecido pelo tempo. Por razões sentimentais, entrei. Apenas por razões sentimentais. Não li Lenine, mas já o ouvi citado, a religião é o ópio do povo. A falar comigo próprio nos degraus da igreja: sim, o ópio do povo. Sou ateu: li O Anti-Cristo, que considero uma obra capital. Acredito na transmutação dos valores, meu caro senhor. A Igreja tem de ser eliminada, é o refúgio da burgessia, a classe dos burgessos e dos casca-grossa e dos charlatães de segunda.»
[John Fante, Pergunta Ao Pó; trad. Rui Pires Cabral, Ahab, Outubro 2009;
15 de dezembro de 2010
14 de dezembro de 2010
Às vezes, lá calha...
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«Na verdade, para dar aos pastéis de toucinho a forma e o sabor que têm, há que ter um forno. O mesmo aconteceu a Maria Pardala quando encheu a Graça do Divor de luto.»
Nem sempre a lápis (111)
Papiro do dia (12)
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Não me lembro do que fiz a seguir. Talvez tenha ido visitar o Benny Cohen, que vivia num quarto por cima do Grande Mercado. O Benny tinha uma perna de pau com uma portinhola, onde guardava cigarros de marijuana. Vendia-os a quinze cêntimos cada um. Vendia também jornais, o Examiner e o Times. No quarto de Benny havia pilhas de exemplares da The New Masses. É possível que dessa vez, como de costume, ele me tenha angustiado com a sua negra e terrível visão do mundo futuro. Talvez me tenha admoestado, agitando sob o meu nariz os dedos manchados, por eu ter traído as minhas origens proletárias. Talvez, como de costume, eu tenha saído de lá a ferver de indignação, descendo as escadas poeirentas até ao nevoeiro da rua, cheio de vontade de esganar um imperialista. Talvez sim ou talvez não; não me recordo.
Dirigi-me ao Bairro Mexicano com uma sensação de náusea sem sofrimento. Eis a Igreja da Nossa Senhora, muito antiga, o adobe das paredes enegrecido pelo tempo. Por razões sentimentais, entrei. Apenas por razões sentimentais. Não li Lenine, mas já o ouvi citado, a religião é o ópio do povo. A falar comigo próprio nos degraus da igreja: sim, o ópio do povo. Sou ateu: li O Anti-Cristo, que considero uma obra capital. Acredito na transmutação dos valores, meu caro senhor. A Igreja tem de ser eliminada, é o refúgio da burgessia, a classe dos burgessos e dos casca-grossa e dos charlatães de segunda.»
13 de dezembro de 2010
12 de dezembro de 2010
«É bom trabalhar nas Obras» (57)
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[Francisco Casavella, Um Anão Espanhol Suicida-se em Las Vegas; em tradução para a Minotauro;
Papiro do dia (11)
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- Pára, homem – respondeu-lhe Tonio, levantando a mão. – Conta-me tu um pouco as tuas aventuras. Lembra-te de que não sei nada do que andaste a fazer.»
11 de dezembro de 2010
10 de dezembro de 2010
Às vezes, lá calha...
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«Os escritores fazem as literaturas nacionais e os tradutores fazem a literatura universal. Sem os tradutores, nós os escritores não seríamos nada. Estaríamos condenados a viver fechados na nossa língua.»
Nem sempre a lápis (110)
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Papiro do dia (10)
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«Não queria voltar. Melhor dizendo, desde o dia em que tinha posto os pés em Roma pela primeira vez, jurara que aquela outra cidade que tinha sido a sua durante toda a infância, toda a juventude, pertenceria dali em diante ao passado, ao vivo alguma vez mas já não vivo, como Pompeia, a do Vesúvio, não a do tango. Não queria converter-se num desses exilados que, cada tarde, sentados à mesa de um café da moda, vão melhorando a cidade abandonada com entusiasmo de urbanistas, ampliando as ruas, reparando os passeios, ocultando a sujidade e a fealdade por detrás de fachadas de cores estridentes. Uma vez, tinha ouvido um desencantado professor de Literatura Venezuelana comparar a sua Pagateta natal à Veneza dos anos de glória, porque, dizia o académico, “um dia, os nossos pântanos, agora, é certo, imundos, verão levantar-se neles palácios mais luxuosos do que os do doge e abrirem-se canais mais românticos do que os do Canaletto”. Tal nostalgia pré-fabricada não atraía minimamente Fabris.»
[Alberto Manguel, O Regresso; trad. Miranda das Neves, Teorema, Agosto 2009]
9 de dezembro de 2010
8 de dezembro de 2010
Às vez, lá calha...
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Neste lugar, cruzam-se esferas, orlas incendiadas de retornos.
Neste lugar, existem raptos e passeios. Há coisas, aqui, que continuamente se devolvem à vida. Dívidas de jogo. Pactos com o passado.»
Aprender a envelhecer ao longo da escrita
Cada vez que ouço alguém chamar, alguém dizer «senhor Fallorca», a minha memória volta-se logo para o lado, catraia; mas o meu avô não está ali.
Papiro do dia (9)
«O senhor Matias tem uma almuinha mesmo à saída de Santa Rita, perto da linha-férrea que atravessa o sotavento algarvio, e nela cultiva cebolinhos, pimenteiros e tomateiros. Mas o seu grande orgulho são as oitenta e duas belas laranjeiras que ajudou a criar e hoje cada laranja sua quando calha também faz versos.
E quem chega a Cacela passa obrigatoriamente por elas. E quem olha para o lado de onde sopra o vento, sabe como elas mostram o tempo em que são moças ardidas.
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Injustiçado e lutador, o senhor Matias sabe bater o coração atrás das suas oitenta e duas árvores e descobre a solução: na primeira fila, mesmo junto à estrada, só planta as laranjeiras mais audazes e as que sabem morder destemidamente quem se aproximar; nas outras filas ficam as que se riem em voz alta.
Poeticamente, foi o que fez. Ao que parece, do tamanho de um ramo de laranjeira é a coragem do senhor Matias.»
6 de dezembro de 2010
Porque a Net fornece um novo dia
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... quando a sorte não penetra, três na peida
... li mesmo agora no livro das caras com o seguinte texto:
“A &etc, que nem computador tem, passou a ter um blogue – principalmente para poder chegar a quem procura os seus livros e, muitas vezes, se esbarra com um [falso] «está esgotado» [que na verdade quer dizer, em 90% dos casos, «não temos em stock/na base de dados e não me apetece ligar para a distribuidora a perguntar se existe em armazém»”
Às vezes, lá calha...
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Era esse o segredo.
Aí, sentia-se bem, num mundo sem cor nem pessoas, onde a inexistência a levava longe, lá muito longe, onde o olhar repousa no tempo e a solidão não cabe.»
Nem sempre a lápis (109)
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Mais distante no tempo e percurso, a capa d’O Velho Expresso da Patagónia (Paul Theroux) alimenta a metáfora.
Papiro do dia (8)
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Um monte que só dá palhaços, dizem em S. Gregório. De facto, apenas ali moram há mais de quatro gerações arlequins, polichinelos, títeres, saltimbancos e bobos.»
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