18 de dezembro de 2010

«É bom trabalhar nas Obras» (59)

«As partes da cara da recitadora pareciam não se terem juntado espontaneamente: tinham sido alojadas com a vontade de uma pessoa que compra tranquilamente o melhor em várias casas e depois junta e aloja tudo com gosto e sem se esquecer de nada: estava ali todo o necessário para uma cara. Na casa dos olhos tinha escolhido um par grande, de cor azul e tinha reparado bem se o seu mecanismo estava perfeito; de certeza que os teria experimentado, voltando-os para todo os lados; na casa das bocas tinha escolhido uma de tamanho regular, mas cómoda, e com lábios de um vermelho bastante pronunciado. Como era recitadora, teria posto aqui o máximo cuidado: devia emitir palavras claras a grande velocidade, palavras lentas em tons velados, e devia ter grande facilidade de manobra. Realmente, a sua arma mais eficaz era a boca. Num momento em que eu observava a sua estratégia combinada – que era quando ia levantando os braços, semicerrando os olhos e detendo as palavras nos lábios – os meus olhos tinham ficado na sua boca. Ao mesmo tempo que tinha fechado quase completamente a fuga da voz, o lábio superior tinha feito uma onda para um lado da boca e expressava a angústia de um cepticismo romântico. Nos últimos estertores do poema, revirava os olhos para o céu e as pálpebras moviam lentamente as pestanas como escravos a abanar o leque a um rajá. Nas últimas palavras, o lábio superior subia e descia com a lentidão de um pano de cena de um espectáculo. Ao mesmo tempo que a beira dos lábios roçava os dentes, parecia que ela saboreava caramelos amorosos e sentia em tudo aquilo a possibilidade de um prazer ainda mais delicado do que o dos vinhos e das empadas da mesa. De repente, no meio de um dos poemas, ela começou a dar longos passos de um lado para o outro. Como era muito alta e os passos eram para o comprido, tivemos de lhe dar mais espaço. Eu, em vez de correr mais para trás, aproveitei a confusão para me pôr mais à frente. Ela, para ir de um lado para o outro, nem sempre voltava o corpo e caminhava de frente: dava uns passos de lado e as suas pernas pareciam um compasso que se abria e se fechava. Eu tinha deixado de estar suspenso da sua boca e das suas palavras. Os seus passos eram um acontecimento estranho, não só pelo facto de caminhar assim, a meio de um poema, mas porque punha em movimento dimensões e volumes inusuais. No tecido encorpado daquele vestido via-se agitar-se uma ondulação cor de vinho; e essas ondas eram lentas, mesmo nos momentos em que a maré subia de repente e surpreendia a rotação daqueles grandes volumes. Num lado da saia havia uma fila de botões; a ondulação fazia-os aparecer e desaparecer como as cortiças de um aparelho. Os meus olhos lembraram-se de ir até à outra extremidade dela e ver os seus braços, que eram muito brancos e elevavam-se mais acima da minha cabeça; os meus olhos fizeram esse percurso, como se tivessem ido desde o mar até às nuvens.»
[Felisberto Hernández, Contos Reunidos; em revisão final para a Colecção Ovelha Negra / Oficina do Livro;

Sem comentários: