16 de dezembro de 2010

«É bom trabalhar nas Obras» (58)

«Uma noite, depois de ter feito os deveres, li um livro em que um Bandoleiro seguia por um caminho de bétulas. Eu não sabia o que eram bétulas, mas calculava que fossem plantas. Tinha deixado de ler porque estava com muito sono, mas ia para a cama com a palavra bétulas nos lábios. Já deitado, pensava como teriam feito para pôr nomes às coisas. Não sabia se teriam procurado nomes para depois se poderem lembrar delas quando não estivessem presentes, ou se tiveram de adivinhar os nomes que elas teriam antes de as conhecerem. Também era possível que as pessoas de outrora já tivessem nomes pensados e depois os distribuíssem entre as coisas. Se assim fosse, eu teria posto o nome de bétulas às carícias que fizessem a um braço branco: seria a parte volumosa do braço branco e as tulas seriam os dedos que o acariciavam. Então acendi a luz, tirei o caderno e o lápis da pasta carteira e escrevi: “Eu quero fazer bétulas à minha mestra”. Depois tirei a borracha, apaguei e desliguei a luz. No dia seguinte, a mestra enrugava as sobrancelhas sobre algo que eu tinha escrito; e era porque a frase que eu tinha composto na noite anterior não estava bem apagada; então ela lia ao mesmo tempo que perguntava: “Eu quero fazer o quê à minha mestra?”. Lutou um bocado para me arrancar a palavra bétulas; mas quando quis saber por que é que a tinha escrito, embatuquei e ela teve de desistir. Então disse: “Que menino mais estranho, este!”.
Uma tarde comecei a imaginar o que aconteceria se eu acariciasse um braço à minha mestra e estive muito perto de fazê-lo; mas depois pensei que teria sido mais fácil ensaiar uma luta com os punhos do que acariciar a mestra com os dedos.»
[Felisberto Hernández, Contos Reunidos; em revisão final para a Colecção Ovelha Negra / Oficina do Livro]

7 comentários:

Fernando Dinis disse...

Venha mais!

Cristina Torrão disse...

Pergunto-me porque é que para muita gente é tão difícil fazer carícias (ou bétulas, pronto) às crianças...

fallorca disse...

Kássia, será assim tanta gente? Eu é um vê se te avias de ternura: sejam crianças, adultos, velhos, animais
Tenho uma porrada de «netos e netas» na esplanada a pedirem-se colo :)

maria disse...

«Também era possível que as pessoas de outrora já tivessem nomes pensados e depois os distribuíssem entre as coisas»

isto é simplesmente sublime; mais logo posto um pedaço de texto da família deste :)

fallorca disse...

Espera uns mesitos (poucos) e terás oportunidade de ler uma das prosas mais estranhas, mais inventivas e pessoais que possas imaginar.

fallorca disse...

Ah, e bétulas para todas/os :P

Cristina Torrão disse...

Felizmente, não é a maioria, fallorca. Mas há que chegue...