3 de fevereiro de 2012

«É bom trabalhar nas Obras» (100)

«Nesse tempo – eu devia estar a começar a primária – fui adquirindo o hábito da leitura. Começara a ler uns dois anos antes, mas, dado que agora tinha um acesso contínuo ao universo nítido ao qual pertencem as letras e os desenhos dos livros infantis, decidi aproveitá-lo. Lia principalmente contos, alguns mais ou menos longos como os de Wilde e os de Stevenson. Preferia as histórias de suspense ou de terror como O retrato de Dorian Gray ou O diabo numa garrafa. Também lia com frequência um volume de lendas bíblicas que o meu pai tinha – tão ou mais aterradoras –, como aquela em que a princesa Salomé decide decapitar o homem que tanto desejava ou aquela em que atiram Daniel para a cova dos leões. O passo para a escrita deu-se naturalmente. Nos meus cadernos pautados, à maneira francesa, apontava histórias em que os protagonistas eram os meus companheiros de aula que passeavam por países remotos, onde lhes sucediam toda a espécie de calamidades. Aqueles contos eram a minha oportunidade de vingança e não podia desperdiçá-la. A professora não tardou a dar-se conta e, movida por uma estranha solidariedade, decidiu organizar uma tertúlia literária para que pudesse expressar-me. Não aceitei ler em público sem antes me assegurar de que um adulto ficaria ao meu lado nessa tarde, até que os meus pais me viessem buscar, pois era provável que mais do que um dos meus companheiro se lembrasse de ajustar contas à saída das aulas. No entanto, as coisas correram de maneira diferente da que eu esperava: ao terminar a leitura de um conto, onde os meus companheiros morriam tragicamente enquanto tentavam escapar de uma pirâmide egípcia, os meninos da minha turma aplaudiram emocionados. Os que tinham protagonizado a história aproximaram-se satisfeitos para me dar os parabéns, e os que não tinham, suplicaram-me que os fizesse participar no conto a seguir. Foi assim que, pouco a pouco, adquiri um lugar particular dentro da escola. Não tinha deixado de ser marginal, mas essa marginalidade já não era opressiva.
Eram os anos setenta e a minha família tinha abraçado algumas das ideias progressistas que imperavam nesse momento.»
[Guadalupe Nettel, O corpo em que nasci; em tradução para a Teodolito;
hábito de leitura] 

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