29 de julho de 2012

Papiro do dia (244)

«Quem nada teria para confessar era o meu tio-bisavô, primeiro porque era incapaz de se lembrar de alguma coisa de que tivesse de se arrepender, e o seu critério de bondade vinha do que teria ou não feito de que se pudesse culpar; depois porque eu próprio, que dele não sei mas do que o dia e a circunstância da morte, não encontro memória de coisa alguma que me possa servir para dizer se era bom ou mau, embora possa acrescentar que a sua atitude para com os caseiros seria nefasta, extorquindo-lhes o mais que podia, e tratando-os com a sobranceria do proprietário que não aceita que lhe venham dar um carro cheio de alfarroba quando o que devia ser era dois carros, e a culpa disso era de quem a apanhou, que ou não fez o trabalho como devia ser ou roubou metade da colheita, e as acusações caíam sobre o homem que de nada se podia defender, de acordo com uma regra que fui encontrar no livro de Politzer, em termos teóricos, e depois procurei adaptar à realidade portuguesa, escrevendo apontamentos avulsos em cadernos que comprava em Paris na Joseph Gibert, no número vinte e seis do Boulevard St-Michel, e onde o pautado francês me servia para disciplinar o pensamento numa escrita de letra minúscula, quase hieroglífica, que tinha também o objectivo de não ser lido pelo tipo sentado na mesa ao lado, no café, que podia bem ser da polícia política e vigiar que nada se passava de anormal à sua volta, como de resto nada se podia passar de anormal em todo o país.
A dúvida que ainda tenho é saber se continua a passar-se alguma coisa no país, mesmo que tenhamos passado por uma revolução, por uma contra-revolução, e por marés em que direita e esquerda vão mantendo a ilusão de um ciclo lunar, umas vezes com a ideologia mais alta, e outras, como agora é o caso, com a ideologia mais baixa, deixando ver na areia da política todo o lixo que os petroleiros vão limpando dos seus depósitos, ao longo da nossa memória do que foi a revolução, que já foi, Deus a tenha em bom recato, e aos livros subversivos também, que hoje já não valem nada, nem sequer em feiras de alfarrábios.
Ora o que eu sei é apenas isto:»
[Nuno Júdice, O anjo da tempestade; Dom Quixote, Outubro 2004]

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