(«Está a ver a maçã da Apple? Não serve de logotipo por acaso.»)
30 de dezembro de 2013
29 de dezembro de 2013
Cor de burro quando zurre...
por muito que o pretenda o chauvinismo editorial, os autores entrevistados por Carlos Vaz Marques não têm a dimensão da compilação avulsa entre vários números da revista norte-americana;
o pomposo autor da fraude faria chorar até às lágrimas entrevistadores e entrevistados constantes num livro interessante, que ele traduziu, mas a pertinência da vaidade sobrepôs à continuidade.
Essa sim, seria de destacar e louvar.
27 de dezembro de 2013
21 de dezembro de 2013
Às vezes, lá calha...
«Suspendo-me frequentemente a meio da escrita,
interrompo, adio,
porque não aguento a sua claridade.»
(Teolinda Gersão)
Nem sempre a lápis (464)
Memória descritiva
Manuscrito
Quando disse que tinha conseguido passar tudo a limpo, a Olga perguntou-me pelos manuscritos.
Deduzi que se referia aos cadernos diários escritos com marcadores a cores, e disse-lhe que já os tinha deitado fora há muito tempo.
Acredito que ela possa ter alguns guardados, para não dizer, escondidos da minha indiferença destruidora.
Mesmo assim, perguntou-me com uma tristeza mal disfarçada:
- Então não tens manuscritos?
É verdade, não tenho manuscritos.
Na adolescência, aguardava o fim-de-semana para dactilografar no escritório do meu pai, aplicando-me a paginar e a colar cadernos de poemas.
Mais tarde vim a herdar a velha Hermes 2000 do meu avô, que conservo como um caderno em branco, e passei a escrever directamente à máquina.
Não só resolvi a acusação de ter uma letra feia, como o problema de a decifrar mais tarde.
Quando os computadores surgiram nas redacções dos jornais, guardei resmas de linguados de papel pardo, convencido que resistiria ao fascínio dos sucessivos processadores de texto que tenho utilizado.
Comecei a acumular dezenas de versões, guardadas em disquetes e impressas em folhas, que acabo por me esquecer dentro de pastas.
Raras vezes comparo as versões e, inconscientemente, julgo ter contribuído também para a morte do manuscrito.
No entanto, apesar de ver que o meu filho só lê CD’s e que as próprias editoras se multiplicam em esforços de actualização, ainda me custa a aceitar a inevitável morte do livro.
Esse objecto que me possui e completa, tanto no bolso do casaco, como para o repouso do olhar.
Papiro do dia (424)
«À beira do mar havia uma árvore velha, coberta de pássaros que se acomodavam para passar a noite. Milhares de pássaros, vestindo a árvore como folhas, muito juntos ao lado uns dos outros, sem se deixarem perturbar pela luz dos candeeiros da rua que iluminavam com intensidade algumas zonas. Por vezes um dos ramos oscilava no vento e os pássaros balançavam adormecidos, por vezes um deles acordava e começava a esvoaçar, procurando lugar noutro ramo mais acima. Pequenos pássaros como sombras, na árvore que dormia.
Os corpos exibiam-se na praia. Bronzeados, jovens, alegres.
O corpo humano como a mais bela criação da natureza. Nada é mais perfeito.
Atravessou a vila depois do jantar, à hora do passeio pelas avenidas. Passou em frente dos cafés e dos quiosques, das gelatarias e das lojas de artesanato, das tabacarias e das tendas de feirantes, sempre à beira do mar, até à esplanada da Fortaleza, onde se entrava através de um arco, e até à capela de onde, todos os anos, saía a procissão do santo, num certo domingo do verão.»
[Teolinda Gersão, As águas livres; Sextante, Abril 2013;
19 de dezembro de 2013
Porque a Net fornece um novo dia
«– O que é que escreves? Contos? Ou ficção normal?
– As duas coisas. Sou ambidestro.
– As duas coisas. Sou ambidestro.
Nem sempre a lápis (463)
Memória descritiva
Maçã
Junto ao tanque da casa do meu avô, para onde os meus pais nos mudaram, uma macieira convidava-me a descobrir o novo espaço, com maçãs ácidas.
Subia para cima da pedra de lavar roupa, e deitava-as abaixo com uma vara.
As maçãs esmagavam-se no chão, ou ficavam a boiar na água fresca do tanque.
Nenhuma cobra se enleava no tronco, nem nenhuma me deu a alegria de me cair na cabeça, para que as recordasse com outra dimensão.
Creio que a evitavam, acautelando-me a memória.
Depois seguiram-se as investidas pelos pomares alheios, as guerras à maçanzada, no Verão, separados pelo rio que nos demolhava o crescimento.
Uns anos mais tarde, descobri outras maçãs.
Cortadas em quartos, secavam ao sol nos telhados velhos, à altura do meu apetite partilhado com as abelhas, que lhes sugavam o açúcar destilado pelo sol morno de Setembro.
Separavamo-nos no fim das férias:
elas eram guardadas em grossos frascos de vidro, que me esperavam pelo Natal, e eu regressava ileso à casa, onde já não era tentado pelas maçãs, nas árvores moribundas.
Papiro do dia (423)
«Quando a noite aqui chegava, por cima da água dos poços, era de novo o reino do céu constelado do deserto. No vale da Saguiet el Hamra, as noites eram mais suaves e a lua nova subia no céu escuro. Os morcegos começavam a sua dança em redor das tendas, voavam ao rés da água dos poços. A luz dos braseiros vacilava, espalhava o cheiro do óleo quente e do fumo. Algumas crianças corriam por entre as tendas, soltando gritos guturais de cães. Os animais já dormiam, os dromedários com as patas presas, os carneiros e as cabras nos círculos de pedras secas.
Os homens já não estavam vigilantes. O guia tinha descansado a espingarda à entrada da tenda e fumava olhando em frente. Mal ouvia os ruídos suaves das vozes e dos risos das mulheres sentadas junto das braseiras. Talvez sonhasse com outras noites, com outros caminhos, como se a queimadura do sol na pele e a dor da sede na garganta não passassem do começo de outro desejo.
O sono passava devagar pela cidade de Smara. Algures, a sul, na grande Hamada de pedras, não havia sono na noite. Havia o torpor do frio, quando o vento soprava na areia e punha a nu o soco das montanhas. Não se podia dormir nos caminhos do deserto. vivia-se, morria-se, olhando sempre com os olhos fixos queimados pela fadiga e pela luz. Por vezes os homens azuis encontravam um dos seus, sentado bem direito na areia, de pernas estendidas, com o corpo imóvel nos farrapos de roupa que esvoaçavam. No rosto cinzento, os olhos escuros fitavam o horizonte movediço das dunas, pois era assim que a morte o tinha surpreendido.»
[J. M. G. Le Clézio, Deserto; trad. Fernanda Botelho, Dom Quixote, 3.ª ed. Fevereiro 2009]
17 de dezembro de 2013
Às vezes, lá calha...
«Há rastos um pouco por toda a parte na poeira dos velhos caminhos, e Lalla diverte-se a segui-los. Às vezes não levam a parte nenhuma, quando são rastos de pássaro ou de insecto.»
(J. M. G. Le Clézio)
Nem sempre a lápis (462)
Memória descritiva
Lorca
No duerme nadie por el cielo. Nadie, nadie.
No durme nadie. Las criaturas de la luna huelen y rondan las cabañas...
...e em Guadix vislumbrei uma lua podre, cúmplice, com quem partilhei a sombra e um viño de Verano, pelas bodegas de Jaén.
Apátrida, irremediavelmente ibérico, enquanto o relógio de parede me dispensava o sono europeu da felicidade.
Comovi-me com Recuerdos de la Alhambra, como coisa minha, e acertei a alma pelos acordes de Tárrega.
Um guisado de rabo de toro chamou-me à realidade, mas persegui-lhe o resto do corpo pelo labirinto granadino das emoções.
Volúvel,
insone,
culpabilizado pela existência.
Um taxista explicou-me que “no duerme nadie por el cielo”, enquanto as ruas crepitam de criaturas lunares, sequiosas de sangue borbulhante que as embriague.
Hoje, Granada acolhe o rio num leito de betão, e partilha comigo a vergonha de ter matado um poeta, como a do Rei que me mataram.
Eu não sabia...
eu não sabia que o meu nome se pautava pela música de Falla, e um grito de Lorca.
Papiro do dia (422)
«Surgiram, como num sonho, no alto da duna, meio escondidos pela névoa de areia que os seus pés levantavam. Desceram lentamente para o vale, seguindo a pista quase invisível. À cabeça da caravana, vinham os homens envoltos nos seus mantos de lã e com os rostos dissimulados no véu azul. Com eles caminhavam dois ou três dromedários, seguidos pelas cabras e pelos carneiros espicaçados pelos rapazes. As mulheres fechavam o cortejo. Eram silhuetas pesadas, embaraçadas nos pesados mantos, em que a pele dos braços e das testas parecia ainda mais escura nos véus cor de anil.
Andavam sem ruído na areia, devagar, sem olhar para onde iam. O vento soprava continuamente, o vento do deserto, quente de dia, frio à noite. A areia corria em torno deles, entre as patas dos camelos, fustigava a cara das mulheres que baixavam a tela azul sobre os olhos. As crianças corriam, os bebés choravam, enrolados em tecidos azul às costas da mãe. Os camelos rosnavam, espirravam. Ninguém sabia para onde se ia.»
[J. M. G. Le Clézio, Deserto; trad. Fernanda Botelho, Dom Quixote, 3.ª ed. Fevereiro 2009]
14 de dezembro de 2013
Nem sempre a lápis (461)
Memória descritiva
Livro
Tive-os de histórias e para colorir.
Como toda gente que fazia anos, e que acreditava no Pai Natal.
Eram livros enfezados e frágeis, sem futuro.
Empilhava-os no quarto, fascinado com a fronteira esboçada pela sua dimensão infantil, e passei a exigi-los grossos.
A palavra lombada chegaria com as cavalgadas do Buffalo Bill, e pela mão de Os Cinco, descobertos na Gulbenkian.
A partir daí, a minha vida passou a regular-se pelo horário da Citroën de folha-de-flandres.
Como mais tarde condicionaria a minha formação ao & etc. do Lisboa.
Esperava a camioneta com ânsias de namoro, resgatando o suplemento à miséria do quotidiano tolerado.
Entretanto, as lombadas já me tinham posto a salvo da normalidade local.
Com manifesto prejuízo da minha falta de vocação para os desportos físicos.
Não demorei muito a fazer livros.
Primeiro, colei os cadernos diários onde ensaiava a poesia.
Depois dactilografei-a, com pretensões de obras completas.
Deitadas do avesso, as letras esperavam-me nas tipografias, onde fiquei cliente de Gutemberg.
Aprendi a fazer livros e jornais, inalando-lhes a tinta e roçando-me no papel.
As vanguardas despertaram-me para os livros de autor e a art mail.
Usando e abusando das tecnologias da fotocópia, perdi a matriz e vulgarizei a identidade.
Talvez por isso, preciso que me façam livros com cabeça, tronco e membros.
Livros onde ainda é possível ouvir o pulsar impressor, sob o silêncio do e-mail.
Papiro do dia (421)
«Tocou o telefone. Na entrada do hotel já estavam à minha espera. Mas eu continuava a observar o rosto no espelho, como se estivesse a despedir-me de alguém. Era uma pessoa diferente… agora estava doente, mas não como tantas vezes antes, quando sentia cansaço ou fraqueza por causa das condições meteorológicas ou depois de algum excesso gastronómico. Estava doente de outra maneira: como se tivesse sido envenenado. A sensação mais profunda de todas as doenças graves é a de envenenamento; pelo menos alguém me dera essa explicação. Se calhar tinha bebido ou comido alguma coisa que me fizera mal. Que eu soubesse não. Este sintoma é característico não só das pessoas que têm a sensação de envenenamento, por terem comido algo estragado ou substâncias químicas, mas aplica-se também aos casos de pneumonia, ao cancro, a problemas cardíacos e outras doenças. O doente sente que está a sofrer uma alteração significativa. Lembrei-me de um cirurgião conhecido que, numa ocasião, me tinha dito que não prestava muita atenção a um paciente, apenas quando este lhe dizia com indiferença: “Doutor, não se passa nada comigo, só não me sinto bem.” Um bom médico consegue distinguir tão bem como um músico esse “não me sinto bem”, dito com sinceridade e ênfase, das queixas de um hipocondríaco que está a choramingar. Se for dito com angústia, vindo do profundo da alma, é um sintoma mais suspeitoso que qualquer outro, detetável pelas análises ou exames realizados com máquinas e substâncias químicas. Este sentimento profundo e elementar de estar envenenado projeta o fim.»
13 de dezembro de 2013
11 de dezembro de 2013
Dar a face pelo book de outros
"Today", uma publicação gratuita que se define a si própria como o melhor visitor guide do sítio, exibe no seu interior um intrigante anúncio. Logo na quarta página, um convite a duas colunas para a "a maior exposição de Marc Chagall jamais realizada na América".
A ocorrência não pode deixar de me parecer insólita, entrando-me pelos olhos dentro estou eu sentada ao balcão de um coffe bar, "Do-you-want-more-coffe?-Yes-please-thank-you", tal e qual como nos filmes, acabada de chegar a Las Vegas. E Las Vegas, como se sabe, fica no meio do deserto.
Aterrara na noite anterior. Depois de esperar, com algum nervosismo, que o serviço de fronteiras de Queens em Nova York (onde fizera escala) confirmasse que sou uma pessoa de bem (poupo-vos aos pormenores e à minha detenção de 3 horas pela polícia do aeroporto), lá me reconhecem o visto e posso seguir viagem.
«Então, é jornalista?», remata-me a autoridade no final do episódio. «Sim», respondo laconicamente, já de passaporte na mão. «E o que vai fazer a Las Vegas?». A resposta, gambling, saiu pelos vistos com rapidez excessiva, deflagrando um lance de desaprovação e perplexidade no meu interlocutor. Recuo: "Estava a brincar!", e sempre recuando, desta vez em direcção à porta, eclipso-me à pressa pelos corredores.
Em Queens tentara repor os meus níveis de nicotina, pelo que me dirigi a uma funcionária em demanda da smoking area. «Lá fora.» «Lá fora?!», insisto, enquanto me viram as costas. E acabo a fazer horas junto aos deserdados do fumo, sucidando-me com eles por um bocadinho ao ar livre.
Repare-se, no aeroporto Mac Carran não se fuma outside. Uma sala apropriada, a que não faltam algumas máquinas de jogo, espera-nos mal tocamos solo firme, embora seja tal a espessura do ar que até eu própria desisto.
Apesar de ter dormido durante as cinco horas do voo, identifico o passageiro do lado, maço de tabaco na mão. «A primeira vez em Las Vegas?», pergunta-me enquanto esperamos pela malas. Confirmo. Quer saber de onde venho. «Portugal.» «Portugal, Europa?», comenta, surpreendido. «And you?», chuto no meu inglês emperrado. «Eu?» «Sim, o que veio fazer a Las Vegas?». Dispara-me um gambling certeiro, tão certeiro como um royal flush. Então já somos dois. Bom, no meu caso, em rigor não venho para jogar; confesso, contudo, sempre ter tido uma simpatia especial, e não apenas literária, pelo Fyodor Dostoievsky.
Anualmente, os aviões despejam em Las Vegas mais de 30 milhões de passageiros - o correspondente a cerca de 7 a 8% da população americana. O nova-iorquino Ed, motorista negro de tamanho XL que já circulou por Chicago e que há meia dúzia de anos o destino retém por aqui, cuja idade, indefinida, parece ser a idade de quem conseguiu assistir a todos os «fora-de-horas» sem que por isso o olhar lhe endurecesse o rosto, diz-me que a maioria das pessoas que transporta do aeroporto chega para jogar. Jogar ou anything else, acrescenta. Porque tudo é possível em Las Vegas... desde que se tenha dinheiro.
Atenção: Ed não é um cínico, apenas um céptico, nunca por nunca um moralista. Explica-me: «Estás sentada durante horas a desafiar uma máquina. Ficas depenada. Acabas por te ir embora. Chega um tipo qualquer e no segundo seguinte sai-lhe um jackpot daqueles! Percebes o que quero dizer? Ganhar é só uma questão de se estar no sítio certo à hora certa.» Como a vida, Ed? «Yes», como a vida, responde Ed.
Regresso a Chagall. Passados uns dias, hei-de andar de «Today» na mão à procura da Centaur Art Galleries. A coisa cheirava-me a esturro. Las Vegas não é propriamente uma cidade onde se venha para calcorrear museus (apesar do Liberace Museum, do Hermitage Guggenheim Museam e do Guggenheim Las Vegas - do tamanho da Grand Central Station de Nova Iorque, que, como se sabe, é grande). Mas, de tudo o que tinha visto, não imaginava onde poderia encontrar exposta «the largest exhibition of Marc Chagall's art ever shown in America». O mistério adensava-se porque a morada conduzia-me sempre ao Fashion Show Mall, um centro comercial onde já tropeçara vezes sem conta.
Por uma vez entro.
Uma superfície gigantesca, com as lojas do costume e cuja única peculiaridade era ser bastante menos extravagante do que o habitual em Las Vegas: nenhuma Fontana de Trevi, nada de Louvres ou canais venezianos em miniatura, nada de Miguel Angelos em tamanho natural. Bastante europeu, se é que me faço entender... De Chagall, porém, nem vê-lo. Chego a pensar que se tratará de um outro Marc.
Fazendo uma última tentativa, pergunto pela Centaur Art Galleries numa perfumaria. A empregada, solícita, indica-me o primeiro andar do lado oposto àquele onde me encontro. Avisto duas enormes faixas vermelhas que caem sobre o piso térreo junto das escadas rolantes: Marc Chagall inscrito a branco. Só podia ser o mesmo.
Na galeria, dezenas e dezenas de esboços, desenhos e alguns quadros dispõem-se pelas paredes. Os que faltam, para perfazer os duzentos anunciados, amontoam-se pelo chão. Atónita, eis que um homem se aproxima - magro, cabelos apanhados na nuca, óculos de excelente design e fato de melhor corte - tomando a iniciativa de se me dirigir.
«Gosta de Chagall?», e eis que fico sem palavras. Adoro Chagall! - em tom blasé - seria a deixa apropriada? «As pessoas adoram Chagall!», antecipa-se o galerista. Eu vou olhando umas figuras a carvão que retratam os pecados mortais. «É uma série», explica-me. «Os pecados não estão identificados, embora algumas sejam fáceis de adivinhar. O preço pelo conjunto é, evidentemente, negociável. Já tem algum Chagall na sua colecção?»
Começo, finalmente, a entrar no espírito da coisa. Mostra-me as autenticações. «Temos tido imensos compradores. As pessoas, simplesmente, adoram Chagall!», repete-se. «Ao contrário do Picasso. O mês passado tivemos uma exposição e houve quem viesse de propósito só para nos dizer como o detestava!»
Vislumbro uma frecha por onde se esfuma o tema incómodo da minha colecção de arte privada. «Detestava?!», sublinho em tom admirativo. «Sim, consta que era horrível com as mulheres!», confidencia-me. Começo mesmo a entrar no espírito da coisa. Esboço um sorriso. «Bom, não acho muito relevante. Por mim, até podia bater na mãe.» Encara-me surpreendido por detrás dos óculos. «Claro, sim, como artista, claro...», balbucia, como se reflectisse sobre isso pela primeira vez.
Apeteceu-me gritar-lhe: «Bolas, homem! Apesar do Siegel ter ido desta para melhor ainda nenhum de nós era nascido, não precisa de ser tão previsivelmente correcto!» (Fui incapaz de lhe dizer isto em inglês)
Bom, na verdade, até Andy Warhol - Guillermo Cabrera Infante, O Livro das Cidades, capítulo «Viva Las Vegas» - não aguentou o ritmo. E Andy não ficou para a história por ser um menino de coro.
Cito: «Não é de estranhar que Andy Warhol, quando veio e viu, saísse a correr e dissesse 'eu gosto das coisas aborrecidas', querendo dizer que só gostava das coisas aborrecidas e que Las Vegas era, nas suas palavras, 'Demasiado!' De desmaiar.» Pois. Como quando o Howard Hughes, entre gemidos e injecções de morfina, ali-logo-na-hora, contestou o pedido da gerência do Hotel-Casino Le Desert Inn para que cedesse alguns dos quartos do andar que ocupava por inteiro: o pacote pelo dobro do preço real foi a sua última oferta. Em cash (será possível?).
Se me perguntassem agora: «Com o que é que se parece Las Vegas?», só poderia responder: «Las Vegas não se parece com nada.» Recorrendo ainda a Cabrera Infante: «Disse-se que Las Vegas é um caleidoscópico arraial de luzes coloridas. Mas isso não basta. Las Vegas é a única cidade do mundo em que as luzes de néon e as lâmpadas são a arquitectura.»
Confirmam-se as palavras do escritor cubano do cimo da torre do Hotel-Casino Stratosphere (350 metros de altura obrigatórios). Isto de noite, naturalmente. Mas há que subir também à claridade do dia para termos a exacta dimensão do delírio. Porque se do pó viemos ao pó voltaremos. Assim está escrito. E o deserto continua lá.
Areia e montanhas pardacentas (não muito longe fica o Grand Canyon e a cidade mais próxima, LA, a 400 km) estrangulam uma gigantesca cratera na qual se amontoam milhares de casas baixas com garagem e quintal acoplados, e só depois o olhar encontra a Strip - um traçado longo de seis quilómetros onde se alinha pouco mais de uma vintena de edifícios em altura, sede de todos os sonhos e de todos os pesadelos: «Rien ne vas plus!» e soltam-se todas as tremuras ao Fyodor -, que a esta hora se resume a uma inofensiva, desinteressante e estimável avenida.
Se esperarmos até ao anoitecer, a cidade acender-se-á e à sua volta não há-de restar senão uma negritude anterior ao mundo. As luzes e os néons são a arquitectura. Mas mais do que isso: a cidade torna-se paisagem absoluta. E nunca o fake foi tão a única verdade.
Na Strip será preciso esquecer tudo o que julgávamos ser um hotel ou um casino (estão excluídos os que conhecem os locais de jogo no Oriente), e levar um mapa para não nos perdermos no interior destas labirínticas cavernas platónicas onde o sol não entra (ou não o suficiente para se ter uma Ideia do calor que faz lá fora).
Eis-nos no coração dos simulacros soberanos: o dinheiro que remete para as fichas; as fichas que remetem para a sorte; a sorte que remete para o dinheiro; o dinheiro que remete para si próprio (quanto ao Belo, ao Bem e à Felicidade chegarão por acréscimo) - aqui está, meu caro filósofo, o que aprenderíeis em Las Vegas.
Note-se: os hotéis não têm casinos, os casinos têm hotéis e a própria cidade não é mais do que um imenso casino onde nos dão lições grátis pela manhã para que joguemos à noite: «Faites vos jeux madames et messieurs! Faites vos jeux!»
No Paris, uma perna da Torre Eiffel assenta na sala de jogo, as outras duas no passeio público amparando o Arc de Triomphe, o Louvre, a Place de la Concorde e outros clichés; no Caesars Palace (onde Dustin Hoffman, o irmão autista, quase leva a casa à bancarrota - obviamente, uma contradição nos termos), a piscina evoca as termas de Pompeia e uma estátua de César Augusto espera-nos à entrada - Os Que Vão Perder Te Saúdam!, digo eu; o Luxor reproduz em tamanho natural a pirâmide de Gizé, e a Esfinge, também com as medidas exactas, vigia a entrada do hotel; no New York New York podem-se tirar fotografias ao lado da Estátua da Liberdade e ninguém notará a diferença; o Mandalay Bay inspira-se na Birmânia e esconde uma lagoa artificial de tamanho suficiente para nela caberem duas praias de águas tranquilas e uma com ondas de sete metros para surfar no deserto; no MGM Grand (com 5005 quartos - o maior hotel do mundo até à construção do Venitian), meia dúzia de leões passeia-se numa jaula envidraçada, rugidos dobrados e falhos de sincronia que ressoam desgraçadamente pelo lobby; o Venetian (agora à frente, com seis mil acomodações), que veio substituir o mítico Sands onde Sinatra costumava actuar e que chegou a fazer parte do testamento de Hughes, encontrou modelo na cidade italiana, reproduzindo a Praça de São Marcos, as pontes, e até um canal de 400 metros onde casais se passeiam de gôndola sem risco de submergirem, a não ser nas lojas de marca e galerias; The Mirage decidiu-se por uma gigantesca cascata num jardim de mais de mil palmeiras onde, de noite, de 15 em 15 minutos, um vulcão vomita fogo; no Treasure Island evocam-se piratas e na baía em frente ao hotel, onde estão ancorados dois navios, diariamente entre as 16h e as 21h30 os bons do HMS Brittania atacam os maus do Hispaniola (ou será o contrário?).
Perante o que me parece ser uma demência encartada, o histórico Flamingo passa por um exemplar de discretíssimo classicismo... E tudo aqui é tão fake que, antes de ver realmente vistos os pássaros que saltitam por Las Vegas - uma variante de corvos -, apostei que o seu intenso chilrear vinha de uma gravação dissimulada por entre a folhagem das árvores.
As lagostas perseguem-me. Um empregado de papillon e fisionomia hispânica exibe um horrível crustáceo sob um sorriso luminoso: «The ultimate lobster experience». O cartaz está por todo o lado. Hei-de testemunhar, nas ementas gastronómicas, que a lagosta é quase tão democrática como as máquinas caça-níqueis.
O barulho metálico das moedas a serem engolidas - ou despejadas - por estes artefactos luminosos inventados no princípio do século XX, originalmente para distribuição de pastilhas elásticas (três sabores para três rodas giratórias - laranja, cereja e ameixa; quando se alinhavam três iguais levavam-se mais pastilhas para casa), tilinta 24 horas. Aguarda-nos de manhã, quando saímos do hotel, e aguarda-nos à noite, quando regressamos ao hotel.
De slot machines passaram, nos anos 50, a one-arm bandits (bandidos de um só braço) e juro que vi, tão realmente vistos como os pássaros que não eram virtuais, seriam já umas quatro da manhã, uma recém-casada, ainda de bouquet e vestido branco de noiva, um noivo e um padrinho alugado - Presley saído do Viva Las Vegas de 1964 -, puxando afincadamente o único braço do bandido. Red/White/Blue: prémio máximo... não registei os dólares.
O casal, recém-chegado da Wedding Chappel do hotel, acrescentava-se à interminável lista dos famosos que deram o nó em Las Vegas (segundo as estatísticas, um casamento cada cinco minutos; alguns deles durarão mais ou menos o mesmo). Ao longo do tempo, em paralelo à presteza dos serviços matrimoniais, também o jogo se desenvolve. Os dados foram definitivamente lançados em 1931, quando as apostas se legalizaram no Estado do Nevada; a paixão dos americanos pelas artes do azar parece, contudo, ser muito anterior. Roubo a prova a Bill Bryson e a Made in América: «Mark Twain conta a história de um homem do Oeste que vinha dar à viúva de Jo Toole a notícia da sua morte: 'O Joe Toole vive aqui?' e, quando a viúva respondeu que sim, ele disse: 'Quanto aposta que não?'»
Joga-se compulsivamente. Isto, mesmo se os caixas dos casinos nos distribuem prospectos, junto com as fichas, sobre como resistir ao vício na sin city e telefones para onde pedir ajuda (não com certeza monetária).
Tratar-se-á, no essencial, de uma medida cosmética: como transformar a cidade do pecado num resort de férias em família. É verdade que se vêem muitas crianças na rua (à mistura com grupos de hispânicos e índios que distribuem folhetos de sexo full service). Mas o que verdadeiramente distingue Las Vegas de uma qualquer Disneylândia é, não só a origem do dinheiro que lhe corre nas veias como maná dos céus - com o capital não se brinca, nem nos States nem em parte nenhuma do mundo, deve ter sido isto que pensaram Lucky Luciano e Frank Costello imediatamente antes de Ben Siegel ser abatido na sua casa em Hollywood, enquanto lia o jornal na companhia de Virginia Hill que depois nem se deu ao trabalho de aparecer no enterro -, como também, e antes de tudo, o seu passado. E o passado é uma doença de pele: não há lifting que nos livre dele.
Que o diga Deedee Wanwinkle, mais real que todas as luzes da Strip, «silly woman» como ela apostava que eu a haveria de definir quando escrevesse uma história a seu respeito. «Vais escrever uma história sobre mim?», os olhos a brilhar «Oh my god! Não acredito», eu sem saber o que dizer, sabendo-lhe o dinheiro emprestado da licença para croupier perdido num bacará azarento, um filho numa morada provisória a centenas de milhas da casa de onde haviam fugido a um destino que Deedee imaginou poder contrariar em Las Vegas, e agora «faço tudo, menos sexo». Deedee, nome encantador, e eu a querer chamá-la Alice e a desejar-lhe um happy end tão feliz como o do antigo Alice Já Não Mora Aqui do mesmo Scorsese do Casino, retrato de uma época que chegava ao fim.
No Casino participou Oscar B. Goodman, fazendo de si próprio - advogado de Joe Pesci a vestir a pele de Nicky Santoro, na vida real o temível Tony Spilotro -, eleito mayor da cidade em 1999 e um dos juristas mais reputados dos EUA cuja lista de clientes é a prova provada que o Mal existe e não foi inventado nos filmes.
«Dirigir um casino é como assaltar um banco sem haver chuis por perto. Para tipos como eu, Las Vegas limpa todos os pecados. É como levar a moralidade a uma lavagem automática de carros», dizia para a câmara De Niro, Sam «Ace» Rothstein, na vida real Frank «Left» Rosenthal, o outro cliente de Goodman, homem que se descreve a si próprio como um «um cavaleiro que combate a rainha negra do FBI» e que chegou ao poder já a cidade fora declarada limpa do crime organizado.
O «boom» (palavra exacta, porque tiroteio era o que não faltava) regista-se na década de 40 - mas o maior jackpot só deflagrará em 1995, no Las Vegas Hilton: 11,9 milhões de dólares!
Será necessário, porém, recuarmos ao século XIX (em rigor, a 1829) para travarmos conhecimento com Rafael Rivera, um jovem mexicano que, seguindo numa caravana pelo antigo trilho espanhol em direcção a Los Angeles, se aventura pelo deserto e descobre... água! O local ficará assim hispanicamente baptizado para sempre: «vegas», que significa várzea. O caminho até LA encurta-se e os mórmones da Igreja de Jesus Cristo dos Santos do Último Dia chegam ao vale tentando dominar os elementos. O último a desistir parte em 1857 e deixa para trás um forte que ainda hoje faz parte das atracções locais.
No início do século XX, a construção do caminho-de-ferro e, posteriormente, de uma grande barragem no Colorado - a Hoover Dam - atrai ao local milhares de forasteiros. Aos novos residentes, muitos deles fugindo à Grande Depressão, acrescentam-se os militares da Las Vegas Aerial Gunnery Scholl, fundada já a II Grande Guerra galgava desenfreada, mais os que vieram para o deserto testar a desarmonia atómica.
Em 1940, Las Vegas tem 8400 habitantes. Actualmente é a urbe americana com maior índice de crescimento anual - conta com um milhão e quinhentos mil recenseados, a que todos os meses se adicionam quatro mil.
Os primeiros hotéis localizavam-se na Downtown. O Nevada, de 1906, ainda lá está, e chama-se hoje Golden Gate Hotel. É também na Downtown que fica a Fremont Street, uma rua fechada ao trânsito por onde noutros tempos andou a fazer gincanas o escocês Sean Connery, um Bond à velocidade dos 70 escoltado pela voz de Shirley Bassey que jurava a plenos pulmões que os Diamonds are Forever.
De casinos muito menos ostentatórios que os da Strip, na cobertura da Fremont, longa de 400 metros, exibem-se à noite, de hora a hora, sofisticados exercícios pirotécnicos ao som de temas com um vago sabor country, contraponto das vozes metálicas e estranhamente doces que nos garantem continuamente pelas ruas que o «jackpot is happened here!» e que, enquanto esperamos a nossa vez, podemos saborear «three, free, frozen margaritas now!».
Poesia pura, como parece ser a opinião do porteiro do Casino Royale que me pergunta, enquanto tomo nota de um pormenor qualquer: «Are you writting a poem?»
Em 1941 surge o primeiro hotel fora de portas. El Rancho Motel constrói-se na Los Angeles Highway ou Route 91 e, sem que ainda se soubesse, estava a assistir-se ao nascimento da Strip (de nome oficial, mas só oficial, Las Vegas Bouvelard). Clark Gable, Zsa Zsa Gabor, Spencer Tracy, Paul Newman tornam-se clientes habituais, até que o hotel desaparece num incêndio nos anos 60, os terrenos comprados posteriormente por Howard Hughes.
Quando o «gangster» galante e elegante Ben «Bugsy» Siegel chega a Las Vegas acompanhado por Virginia Hill, a Strip resumia-se ao El Rancho, Last Frontier... e futuro Flamingo. A ideia não foi de Ben, apesar de no Padrinho II Meyer Lansky, outro judeu, no filme Hyman Roth, anunciar que ele «foi um homem com visão de futuro». Um futuro curto.
O verdadeiro dono do Flamingo chamava-se Billy Wilkerson, um bem-sucedido empresário de Los Angeles e editor do Hollywood Reporter. Quando decidiu construir um casino em Las Vegas, escaparia a Billy o pormenor que o havia de levar à ruína: ele próprio era um jogador. Endividado o sonho, nada mais lhe restou do que aceitar a proposta irrecusável de Ben «Bugsy» Siegel/Warren Beaty que, na tela, como na vida, acabaria mal. Poucas semanas depois da abertura do Flamingo, Siegel cairia crivado de balas em Beverly Hill, acusado de defraudar os cofres da Mafia. Mas repito-me.
Luzes! Luzes! Luzes! Apenas por quatro vezes Las Vegas se dignou baixar o brilho (um brilho tão eléctrico que basta tocar num puxador em metal para sentirmos uma descarga a percorrer-nos o corpo): por ocasião da morte de Kennedy, na sequência do atentado de 11 de Setembro, e quando Dean Martin e Frank Sinatra (a dupla do inesquecível Deus Sabe Quanto Amei) subiram aos céus.
Fiat lux! terá alguém gritado sobre a várzea, encontrada água naquele buraco perdido no deserto. São sempre insondáveis os caminhos dos homens.
Os mórmones há muito tinham desistido, antes do último dia e muito previamente ao primeiro, esse em que algum bandido de um só braço terá apostado ao póquer em como se há-de erguer aqui uma cidade capaz de ofuscar as estrelas e exortar os homens ao vício, tão certo como termos vindo do pó e ao pó voltarmos - o deserto lá está para o provar - e a luz fez-se! E que a arrogância lhes seja perdoada assim como todas as dívidas de jogo.
9 de dezembro de 2013
Às vezes, lá calha...
«Viajar é renascer, libertar-nos das responsabilidades, vadiar, e encontrarmos as imagens perdidas da juventude.»
(Sándor Márai)
Nem sempre a lápis (460)
Memória descritiva
Lisboa
Foi sempre uma miragem.
El Dorado de puto encurralado pela tacanhez da província.
Abordei-a várias vezes, mas adiava-me a adopção.
Depois do Natal, das férias, empoleirava-me no banco de trás do carro, e via-a afastar-se até se diluir nas brumas do futuro.
E quando o futuro chegou, já me tinha tirado os três e mostrado os becos do medo.
Já lhe conhecia a vocação torcionária e os labirintos do cinismo.
Nunca me apaixonei pela luz de Lisboa.
E nunca me senti reconfortado pelos ocasos que lhe douram o Tejo.
Mas lambi-lhe o caleidoscópio dos azulejos.
Apertei a mão a dezenas de batentes de casas mudas e portas que não se abriram.
Lisboa era um barco naufragado.
Uma cacofonia de gentes e costumes.
De sabores novos e fogareiros a carvão, que crepitavam nas esquinas do Bairro.
Um concerto de rotativas de jornais onde me gastei.
Sem prazer, nem glória de 3ª. página.
Cedi à tentação de me oferecer à cidade, sem que ela me pedisse.
Ou desejasse mais um.
Lisboa conhecia mil e uma manhas para me enlear, e eu não dispunha de defesas.
Ou vontade de me furtar à sensualidade das ruas coleantes.
Aos seios úberes das colinas e não me saciar no rio.
Decorridos todos estes anos, nunca consigo dizer que sou de Lisboa.
Eu também não acredito.
Papiro do dia (420)
«Varsóvia tinha caído. Sentia-me tão perto dos polacos, um povo com um destino obstinado e implacável, que, de vez em quando, é destruído brutalmente! E isso também era o sentido verdadeiro da sua sorte: com que tipo de energia atroz e com que exuberância tenaz conseguiram renascer sempre das suas terríveis desgraças! É um povo que está intimamente ligado à música. Estava a pensar nisto, enquanto lia os títulos dos jornais da véspera que anunciavam em letras grandes a queda de Varsóvia, logo depois veio-me à cabeça Chopin. Mas o que é que posso fazer pelos polacos?... Eu só sei dirigir-me ao mundo na linguagem da música e agora, quando no continente ressoava a agonia de uma nação ferida mortalmente, não podia fazer outra coisa que interpretar numa sala de concertos europeia o som mais nobre com que esse povo se virara para a humanidade: fazer reviver a música de Chopin. (…) Na altura do público pedir bis o que iria interpretar? Seria uma peça de Tchaikovsky para eternizar o momento histórico? Deveria tocar o russo, a par do polaco e do alemão, que tentavam estabelecer, através do poder musical. Uma harmonia intensamente negada pelo furor que dominava então na terra. À noite, depois da queda de Varsóvia, refletia sobre estas questões no comboio que me levava a Itália. Sabia que esta emoção sublime de explicar o meu empenho era mais do que um simples encadeamento de ideias. Era uma espécie de serviço; e nisso o embaixador tinha razão. Ia interpretar música polaca, alemã e russa num mundo que já não queria ouvir outra coisa senão os seus próprios gritos de agonia. Dobrei os jornais e paguei a conta.»
[Sándor Márai, A irmã; trad. Piroska Felkai, Dom Quixote, Novembro 2013]
7 de dezembro de 2013
Saldos
(Assírio & Alvim, Março 1977, 16 ex.)
Alcateia
(Hugin, Setembro 1999, 8 ex)
A Cicatriz do Ar
(Black Son Editores, Junho 2002, 15 ex.)
5 de dezembro de 2013
Não sejas uma livraria vai com as ostras...
Rua Prof. Luís Azevedo, nº37 , 8600-617 Lagos
Qui - Sáb: 16:00 - 20:00
282 084 959
3 de dezembro de 2013
Às vezes, lá calha...
«A matéria-prima do meu trabalho, a palavra, não é um elemento tão imprescindível da comunicação humana como às vezes os escritores obcecados pelo orgulho supõem.»
(Sándor Márai)
Nem sempre a lápis (459)
Memória descritiva
O de João de Deus.
As senhoras encostavam a Cartilha Maternal ao quadro, e eu imaginava que algumas letras eram brancas porque a ardósia tinha gasto o preto todo.
Era um livro enorme, que elas abriam com um esforço semelhante à nossa capacidade de concentração para ligar as letras.
E quando as ligávamos, apercebiamo-nos que as letras faziam sons.
Bem diferentes daqueles que a Dona Perpétua - era o nome - extraía do órgão do salão.
Mal lhe víamos a moleirinha.
Derreada sobre as teclas, ordenava as notas musicais que deveriam andar à solta dentro do caixote de madeira, à altura do nosso olhar.
Um cavalo de Tróia.
Durante anos, associei a música aos sons que ela retirava dos pedais, e se perpetuou no caderno de encargos trauteado pelas nossas vozes esganiçadas:
“Na nossa escola haja alegria
sejamos sempre bons companheiros
que sempre seja o nosso dia
sermos bonzitos e verdadeiros”.
Sobretudo na alegria e convicção com que rematávamos o último verso.
Ainda hoje me custa a acreditar que tudo não passe de uma canção.
Uma infantilidade.
E tenho a maior dificuldade em compreender os outros sons das letras.
[Longe do mundo; frenesi 2004]
Ler
Conhecemo-nos no Jardim Escola. O de João de Deus.
As senhoras encostavam a Cartilha Maternal ao quadro, e eu imaginava que algumas letras eram brancas porque a ardósia tinha gasto o preto todo.
Era um livro enorme, que elas abriam com um esforço semelhante à nossa capacidade de concentração para ligar as letras.
E quando as ligávamos, apercebiamo-nos que as letras faziam sons.
Bem diferentes daqueles que a Dona Perpétua - era o nome - extraía do órgão do salão.
Mal lhe víamos a moleirinha.
Derreada sobre as teclas, ordenava as notas musicais que deveriam andar à solta dentro do caixote de madeira, à altura do nosso olhar.
Um cavalo de Tróia.
Durante anos, associei a música aos sons que ela retirava dos pedais, e se perpetuou no caderno de encargos trauteado pelas nossas vozes esganiçadas:
“Na nossa escola haja alegria
sejamos sempre bons companheiros
que sempre seja o nosso dia
sermos bonzitos e verdadeiros”.
Sobretudo na alegria e convicção com que rematávamos o último verso.
Ainda hoje me custa a acreditar que tudo não passe de uma canção.
Uma infantilidade.
E tenho a maior dificuldade em compreender os outros sons das letras.
[Longe do mundo; frenesi 2004]
Papiro do dia (419)
«Os acontecimentos realmente importantes que surgem inevitavelmente das ligações da natureza humana, nunca despertam tanto assombro e desnorteamento como a tensão emocional causada pelo presságio e pela expectativa. A realidade está aqui, logo veremos: foi isso que pensámos e por isso nos mantivemos em silêncio. Ninguém estava excitado ou tentava imaginar as circunstâncias da tragédia. E creio que não estava enganado ao supor que, naqueles momentos, os meus companheiros sentiam o mesmo alívio que eu: horror e alívio, como se, por fim, tudo o que tinha acontecido antes fizesse sentido. Como se fôssemos aliados para que este momento se tornasse realidade, algo que já tinha sentido antes e também mais tarde: a cumplicidade de culpabilidade entre pessoas no momento de um grande perigo.
Z. parou em frente da porta com varanda. Inclinou-se na direcção da maçaneta e pôs-se à escuta. Nós não ouvimos nada, mas compreendemos logo que Z. ouvia os ruídos de uma outra forma, tinha um tipo de “ouvido” diferente do dos caçadores melómanos. Onde nós, sem um talento especial para a música, não captávamos nenhum som, a sua audição delicada, mesmo através da porta, percebeu o pianíssimo da agonia. Permanecia em frente da porta tranquilamente e com um interesse objectivo que caracteriza os peritos, ligeiramente curvado, mais ou menos como se um maestro se inclinasse por cima de um fosso de orquestra para escutar as notas baixinhas de um instrumento que chegavam de longe. Ao cabo de uns minutos, endireitou-se, os olhos brilhavam; aqueles olhos estranhos, de luz sombria, cuja íris parecia estar coberta por uma fina camada de catarata, como se sempre olhasse para uma outra direcção, para um mundo onde a existência não se manifesta em objectos ou formas, mas em sons e ideias musicais.
- Ouvi algo há uma hora atrás – disse. – Pensei que estavam a dormir. Mas não. Um deles ainda está com vida – acrescentou com uma voz firme.»
1 de dezembro de 2013
Dar a face pelo book
Terminado o almoço, os sentidos, viciados no prazer da nicotina, reclamam por um Monte Cristo. O amigo do fotógrafo acende a cigarrilha com manifesta volúpia e o cheiro intenso do tabaco sobrepõe-se ao aroma discreto do café solo - que em Espanha bebem-no de preferência con leche. Na mesa ao lado, um homem de provecta idade termina, também ele, a refeição. O fotógrafo faz um sinal ao amigo que logo tenta contrariar a direcção do fumo, sacudindo desajeitadamente a mão em movimentos nervosos. Ao notar o embaraço, o caballero ― mais do que o dramatismo da língua, o que aqui nos surpreende é o recorte preciso das palavras ― logo exclama: "No se preocupe! Fume usted lo que quiera. Yo ya no puedo fumar pero el humo me estimula..."
Este é o espírito da coisa.
Os espanhóis, é dos livros, falam alto e vivem na rua. O termo ― espanhóis ―, ao qual torcerão o nariz alguns nacionalistas mais politicamente correctos, ganha um sentido maior em Madrid, onde cerca de 80% da população é proveniente de outras regiões ou do estrangeiro. Gentes de Castela, Astúrias, Andaluzia, Galiza, Málaga, Catalunha, País Basco... (no total, são 20 possibilidades) mesclam-se nesta cidade, capital de um país feito de geografias e idiossincrasias várias. Tal mestiçagem é antiga. Notava já Calderón de la Barca, dramaturgo madrileno do século XVII, que "Es Madrid, patria de todos/ (pues en su mundo pequeño/ son hijos de igual cariño/ naturales y extranjeros...".
Apesar da gravidade arquitectónica e da escala algo esmagadora (para um peão, atravessar uma avenida quando o sinal passou a intermitente requer, no mínimo, bravura de espírito e destreza de pernas), Madrid só pode orgulhar-se do seu estatuto há relativamente pouco tempo. Porque embora a sua fundação pelo V Emir independente de Córdoba, Mohamed, recue à ocupação árabe da Península, a elevação a capital do reino apenas se dá em 1556 quando Filipe II (I dos nossos) assim o decide.
Henrique Garcia Pereira, um português adepto do ethos espanhol, sugere no seu livro "Arte Recombinatória" que a escolha terá recaído sobre Madrid e não sobre Lisboa, por, dizia-se, aí não haver mosquitos. Subtraída ao título entre 1601 e 1606, por decisão de outro Filipe (III, II dos nossos), no ano seguinte retoma a ordenação que mantém até hoje.
Seria agora chegado o momento de desenvolver matérias eruditas e listar datas e acontecimentos relacionados com esta villa, que não ciudad, mas que me perdoem o conselho: qualquer guia menor os informará, melhor do que eu, dos meandros historiográficos. Cite-se antes Antonio Ferres, romancista e poeta madrileno que assim pontificou à saída da livraria Casa del Libro, onde marcáramos encontro: "Madrid es un disparate". Na língua do autor de "Los Confines del Reino" isto quer dizer: um excesso.
Não nos precipitemos, contudo. Porque o rendez-vous com Ferres apenas se deu três dias após a partida. Por enquanto, ainda estou no Aeroporto da Portela às voltas com um B.I. caducado.
Foi só à chegada ao check-in que uma funcionária zelosa repara na data prescrita e me recusa o embarque. Em vão protestei e em vão supliquei. À tentativa frustrada de a convencer da relatividade do tempo (o BI caducara há menos de uma semana), seguiu-se uma corrida rocambolesca contra o tempo entre o aeroporto e a Praça do Areeiro, pontuada por telefonemas ao fotógrafo, de guarda à minha mala, a dar-lhe conta das manobras. No Arquivo de Identificação, onde em meia hora me resolvem o problema, não podiam ser mais prestáveis.
Acalme-se! Acalme-se! Vamos fazer os possíveis! Dê cá o dedo! Vai ver que consegue! E as fotografias? Não tem?! E está à espera de quê? Vá já aí ao lado! Deixe isso, nós preenchemos! Despache-se, despache-se! Poupo-vos ao stress. Numa hora fui e voltei ― devidamente identificada ― e à hora prevista sentava-me no avião rumo a Madrid. Tudo está bem quando acaba bem, mas, por agora, ainda estamos nos preliminares.
A correria terá sido premonitória. Uma espécie de ritual de iniciação ao que nos esperava. Felizmente, por melhores motivos. Assim, e para abreviar: na primeira noite recolhemos ao hotel à 01h30m. Chegáramos ao aeroporto de Barajas por volta das 13h00 e, visto tanto eu como o fotógrafo acumularmos sonos atrasados, tornou-se humanamente impossível prosseguir com as digressões madrilenas que, todavia, iniciámos logo na primeira noite com inegável espírito de missão. No segundo dia, desistimos pouco antes das 03h00; no terceiro, perto das 04h00; no quarto.... Creio que me faço entender. Numa manhã de domingo, no Rastro, submersos num mar de cabeças ondulantes entre dois flashs e incontáveis cafés sempre solos, não soube o que responder ao fotógrafo quando este, atónito, me interpelou: "Ele é de noite, ele é de dia. Mas quando é que estes tipos dormem?"
Esta cidade podia servir de mote a um anúncio do Red Bull. Tente, pelo menos a partir de 5ª feira, apanhar um táxi às 05h00 da manhã e compreenderá do que falo (acrescente-se que, ao contrário de Paris, táxis é o que não falta). Ou jantar sem fazer marcação. Ou ir a um espectáculo sem ter reservado bilhete. O ritual começa pelas tapas ― termo que, segundo a tradição, terá resultado do sensato despacho do rei Alfonso X que obrigava a acompanhar o vinho servido nas estalagens de Castela por um pequeno prato de comida que era colocado a tapar o copo, diminuindo assim efeitos etílicos indesejáveis (e não será por acaso que este rei é conhecido pelo cognome de O Sábio) ― continua com as copas, prossegue nas discotecas e termina nos after-hours.
No domingo, por volta da uma da tarde, na Casa António La Cebada, rostos protegidos por impenetráveis óculos escuros denunciam muitas horas sem dormir. Enquanto uns bebem a última caña, outros aguardam (como nós) uma suculenta tortilla servida ao som de ritmos flamencos, confesso que um pouco estridentes...
Foi assim que, incautos, nos vimos obrigados a desistir do restaurante Los Girasoles, ao fundo da calle Hortaleza, zona de nítida renovação urbana, contígua à Chueca, bairro onde a comunidade gay marca pontos e prova o seu talento para fazer reviver as cidades. Não havia hipótese. Na noite anterior trocáramos, em boa hora, o jantar por uma ida ao Café Central, a que chamam a catedral madrilena do jazz, mas hoje queríamos sentarmo-nos e comer de faca e garfo. Eram quase 10h00 da noite ― cheio ― e as reservas estavam completas, mesmo para as 23h00. E para amanhã?
"Si, claro, por mañana, si". O dono, de uma simpatia e profissionalismo à prova de bazuca, passeia-me pelas duas salas, pergunta-me que mesa prefiro, toma nota da reserva. No dia seguinte acolhe-me como se me reconhecesse da minha primeira infância. Pronuncia o meu nome com as letras todas ― Cris-ti-na! (nada do indistinto e tristonho «Crestina» português).
Depois de sentados (eu e o fotógrafo), um telefonema. É Isabel, uma jornalista espanhola que se propõe fazer-nos companhia esta noite. Passamos a ser três a jantar. Sugerem-nos trocar de mesa. Passados cinco minutos, do meio da sala, ouço o meu nome ser novamente enunciado de forma claríssima: Cris-ti-na!, seguido de um gesto que me indica o novo lugar: "Venga!" Levanto-me de um ápice. Obedeço. E aqui terei que esclarecer, para se entender o insólito da coisa, que eu persisto em manter-me do género rebelde sem causa.
Vem-me à cabeça um álbum de Lucky Luke e o entusiasmo de Rantanplan obedecendo à mã Dalton que lhe ordena que se sente: "Finalmente alguém que sabe mandar!" As línguas, como a geografia, explicam muita coisa.
Dir-se-á que do conceito que deu fama à Movida madrilena ― a noite como espaço de liberdade ― se passou aos copos como forma de negócio. Sem querer entrar em polémicas, o que é indiscutível é que, pelo menos para quem chega de fora, eles ― os madrilenos ― continuam tremendamente frenéticos. Movendo-se. E arrastam-nos.
Há lugares que resistem. Escueto reabriu depois de um longo interregno (só ao fim-de-semana) precisamente no mesmo local onde a Movida começou, em torno da Plaza Dos de Mayo no bairro de Malasaña ou de Maravillas. No Berlin Cabaret, numa ruela do La Latina, uma das zonas mais castiças de Madrid, insiste-se em espectáculos independentes que pontuam noites de boa música e melhor ambiente. Por três vezes ― a primeira, à 01h00 ― abre-se o palco e sobem à cena três coelhinhas travesti, irreverentes e um pouco gordas. José María Calafat, um dos sócios do Berlin Cabaret, esclarece-me, antes mesmo de eu ter tempo de lhe ser apresentada: "No hablo de sexo!" E quando, na continuação da conversa, lhe peço para hablar mais despacio, interroga-me sobre a minha compreensão do espanhol. "Com la graciosa irrespetuosidad que es característica del madrileño" (nas palavras de Ortega y Gasset) quer saber se percebi o que perguntara a um dos presentes: se deixara o namorado por ser importante ou por ser impotente.
No Búho Real, abençoado por uma colecção de mais de um milhar de mochos, continuam a servir-se as melhores caipirinhas de Madrid sob o lema sigue disfrutando de la noche. E foi o que fizemos... No táxi, ainda no mesmo quarteirão, avistamos um espaço sem história, o KWAI, que nos definem como o sítio de Madrid que vende as copas mais baratas. Garantem-nos que não têm efeitos secundários indesejáveis. Depois das discotecas (mais do que a música, o que surpreende é a beleza de locais como o Palacio Gaviria ou Joy Eslava no antigo Teatro Eslava, clássicos da noite madrilena), e dos clubes, que mudam de designação conforme o som, da responsabilidade de diferentes DJs, é forçosa uma ida à Chocolatería San Ginés, aberta desde 1894 e toda la noche, destino de peregrinação obrigatória na passagem de ano. O chocolate quente é óptimo e os churros acompanham.
O que mais pasma nesta villa é, não só a imensa diversidade de opções, mas a mistura de gentes e géneros que encontramos nos locais mais distintos. A ser verdade o que me dizia Antonio Ferres ― que em matéria de oferta "hay El Corte Inglés e hay los outros"―, somos obrigados a concluir, ao fim de pouco tempo, que os outros ainda parecem ser muitos.
No Mercado de Fuencarral e ruas adjacentes, sentimo-nos catapultados para o que uma «atmosfera londrina» tem de mais livre e criativo. Lojas de roupa alternativas, jovens descomplexados, pelo menos no que respeita à cor dos cabelos, ruas pejadas de gente nova das mais diversas origens, contrastam radicalmente com o «ambiente Champs Elysées» que se vive, por exemplo, no Bairro de Salamanca, a excelência em matéria de compras.
Tenho para mim, contudo, que a perspectiva de comer bem é ainda uma razão maior que traz muitos portugueses à capital espanhola.
A gastronomia do país vizinho tem vindo a marcar pontos e alguns dos seus chefes actuais ganharam fama internacional. Mas mesmo aos fãs mais convictos dos novos sabores se impõe uma passagem pelo centenário Lhardy.
Foi aí, por volta das 07h30m da tarde, que deparei com um grupo de madrilenas já na casa dos 60 e vestidas a rigor ― calculo que em trânsito para o teatro, porque, mesmo para o padrão local, o esmero era exagerado ― tomando chá em pé, encostadas ao belíssimo aparador do fundo. Estranhei a hora e o desconforto. E também a falta de acompanhamento. Onde estavam os scones?
O Lhardy é conhecido pelo seu cocido, especialidade madrilena superior, a fim do nosso quase homónimo cozido ― mas que não se deixe de provar também um cochinillo ou um cordero assados no forno de lenha do Botin, ao que parece o restaurante mais antigo do mundo, cuja origem remonta a começos do século XVII. Diz a tradição que Goya aí lavou pratos na cozinha e Hemingway, um cliente fiel, referiu-se-lhe no seu romance "Fiesta". E, já agora, confirme-se o humor madrileno na porta quase ao lado, no El Cuchi, restaurante-bar mexicano que anuncia que Hemingwai never ate here. Avisam-nos também que ali não se fala francês, inglês ou alemão, prometendo-nos, em contrapartida, não se rirem do nosso espanhol.
Voltemos ao Lhardy. De arquitectura e decoração românticas, abriu as portas em 1839 e o nome deve-o ao fundador, um suíço que se radicou em Madrid. Como um fama que vem de longe, já uma personagem de Pérez Galdós o descrevia como "el primero en las artes del comer fino". À entrada, uma panóplia de tapas e charcutaria vária recebe os comensais que podem, assim, ou tapear, ou levar para casa uma iguaria mais rara, ou aguardar mesa para o restaurante. Tinham-me falado também do hábito madrileno de vir aqui beber um caldo (de cocido, precisamente), a qualquer hora do dia. Quando interrogo uma empregada sobre o assunto, ela aponta-me simpaticamente um samovar. Abro a torneirinha e sirvo-me. Cumpro o ritual e esclareço o mistério do chá. Como já devem ter concluído, tratara-se de um equívoco. Afasto-me para deixar passar as damas de estômago proletariamente aconchegado pelo caldo caliente e, por momentos, regresso à descontraída Casa Ciriaco, outro dos lugares de referência da cidade (La más deliciosa y menos solemne de las doctrinas, es la gastronomía, diz a publicidade deste Restaurante-Taberna), pejado de imagens de famosos (comovente uma fotografia de Picasso cujo magnífico olhar se percebe rendido ao peso dos anos). Célebre pela sua garrafeira e por ser um dos lugares eleitos da família real, recordo o à-vontade, o tu cá, tu lá desafectado e simultaneamente admirativo com que nos guiam pela adega e falam do rei... e das suas amantes. Nem sei se os donos serão monárquicos. Porque nesta terra pátria do pícaro, tudo é possível. Luísa, por exemplo, uma espanhola apaixonada por Lisboa, resumira a questão à mesa de um almoço: "El rey está bien, pero yo soy republicana a cien por cento."
No As de Los Viños, em frente ao Teatro Albéniz, há outra tradição. A de vir aqui comer torrijas. Aparentadas com as nossas fatias douradas, As de Los Viños é o único estabelecimento em Madrid que as prepara, não com leite... mas com vinho. O oposto da sofisticação do Lhardi, trata-se de uma verdadeira taberna onde o menu completo fica por uma ninharia. Só faltou o café. As tabernas estão impedidas de o vender. No princípio do século existiam mais de 100, agora estão reduzidas a cerca de 50 mas é visível o esforço em renová-las.
Rosa Maria, uma madrilena bem-disposta que nos acompanhou no périplo pelas tabernas históricas, elege as mais reputadas. Casa Labra, onde foi fundado em 1879 o Partido Socialista Operário Espanhol; Taberna Café La Fontana de Ouro, hoje transformada em «bar irlandês», embora mantendo a arquitectura e os azulejos originais; Casa Alberto, no mesmo edifício onde se pensa ter vivido Cervantes... Já não estava connosco quando entrei na Taberna de Ángel Sierra e pude confirmar, mais de um ano após aí ter estado com amigos de boa memória num final de tarde chuvoso, que o vermú continua a ser servido do barril.
Um aparte, só para viciados em calçado. Junto a La Taberna de Ángel Sierra fica a calle Augusto Figueiroa onde, se conseguir encontrar outra coisa que não sejam sapatarias, juro por Santo Isidro, o padroeiro de Madrid, que andarei um ano descalça!
Por razões familiares, Rosa Maria agora sai menos à noite. Estamos sentados no Café Salón El Prado, um dos muitos cafés madrilenos que nos faz sonhar com Viena. Pergunto-lhe qual o segredo de tanta energia. A resposta não se fez esperar: "Hombre, pues no lo sé. Puede que sea la siesta!"
As grandes avenidas é que me matam. São 07h00 da noite e o fotógrafo teima num enquadramento em pleno caos da Plaza de Cibeles. Ossos do ofício.
Uma multidão ciclópica invade as ruas. Some-se em direcção às bocas do metro. Emudece atrás dos vidros dos autocarros. Dispara nos semáforos. Os carros arrancam ao que se me afigura uma velocidade excessiva, obedecendo à polícia que comanda as operações. Deixam no ar um lastro de fumo e o eco cefálgico do barulho dos motores. Um helicóptero soma ruído por cima das nossas cabeças. Para o "Blade Runner" só falta a chuva. A sensação é tão real que, quando o fotógrafo me toca no ombro e me diz "Vamos?", por momentos surpreendeu-me que o Henrique não seja o Harrison Ford.
Esta não é, definitivamente, uma cidade amável, como poderemos dizer de Roma, por exemplo. Não respira a teatralidade delicada de Paris. Ganhará a Londres em beleza mas não chega a ser tão cosmopolita. E contudo... Regresso a Antonio Ferres. Madrid é sobretudo um excesso. Aqui parecem fazer especial sentido os versos da canção de Joaquín Sabina, "las malas compañias son las mejores", o que, aliás, podemos interpretar como uma variante da ironia que se revela na frase de Montalbán: "Cada um de nós é má companhia para os outros."
O índice de ruído (um dos mais elevados da Europa) aconselha a pelo menos uma tarde no Parque del Buen Retiro para retemperar forças ― embora possa não parecer à primeira vista, Madrid é uma «cidade verde»: uma árvore por cada três habitantes. Ou a uma tranquila visita aos vários museus da cidade.
Para nós é já meia-noite e o espectáculo na Casa Patas está prestes a começar. Alguns (não muitos) turistas que aqui chegam guiados pela fama desta Fundación Conservatorio de Flamenco, contribuem para esgotar as entradas. Madrid é um dos melhores locais fora da Andaluzia para se assistir a uma exibição do género celebrado por Carlos Saura. O grupo de hoje chega de Cadiz. O público vibra com o dramatismo da voz. Aplaude a altivez dos gestos. A delicadeza das mãos. A beleza dos acordes. Depois da exibição abandona o local e dispersa-se pela espaçosa sala de entrada. Uns tapeiam na barra, outros ainda jantam nas mesas. Eu e o fotógrafo ficamo-nos pela conversa e pelas croquetas.
Foi então que pela primeira vez na vida, confesso-o publicamente, peço a um empregado de bar para não me encher mais o copo. É que pedi um whisky que me está a ser servido como se fosse água da torneira. Comento depois o sucedido com Luísa, a republicana, dizendo-lhe que em Portugal as doses não são bem aquelas. «Nem em Portugal nem em parte nenhuma do mundo», devolve-me.
E assim é Madrid. Onde a «vida é demasiado importante para ser levada a sério». Para lhe aguentar o ritmo, o segredo, segundo Rosa Maria, está na siesta. Ou na fiesta, digo eu. Como se preferir.
30 de novembro de 2013
Às vezes, lá calha...
«O desgosto é uma condição humana e não médica e, se há comprimidos para nos ajudar a esquecê-lo – e tudo o resto – não há comprimidos para o curar.»
(Julian Barnes)
Nem sempre a lápis (458)
Memória descritiva
Laranja
A estrada para o Caramulo acendia-se de laranjas.
A berma ladeava-se de cestas traiçoeiras, que desafiavam a atenção dos condutores e atiçavam discussões familiares.
A que lhes era alheio o sabor e o preço.
Pelo caminho ficavam as confidências das meninas.
Seios à dimensão de uma laranja, revelados em aulas improvisadas pela curiosidade.
Os gomos adocicavam-nos o tacto, sem que os dedos se quebrassem na expectativa.
Miller fez-me correr pomares à procura das laranjas de Hieronymus.
Mas tudo quanto vi foram as cascas deixadas por Al-Mu’tamid, junto ao sabor uniformizado pela Europa.
Uma vez, o vento atirou-me uma azahar para dentro do chá, em Tânger.
Finalmente, a flor da laranjeira sossegava-me a cabeça no regaço das estradas.
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