«Quando a noite aqui chegava, por cima da água dos poços, era de novo o reino do céu constelado do deserto. No vale da Saguiet el Hamra, as noites eram mais suaves e a lua nova subia no céu escuro. Os morcegos começavam a sua dança em redor das tendas, voavam ao rés da água dos poços. A luz dos braseiros vacilava, espalhava o cheiro do óleo quente e do fumo. Algumas crianças corriam por entre as tendas, soltando gritos guturais de cães. Os animais já dormiam, os dromedários com as patas presas, os carneiros e as cabras nos círculos de pedras secas.
Os homens já não estavam vigilantes. O guia tinha descansado a espingarda à entrada da tenda e fumava olhando em frente. Mal ouvia os ruídos suaves das vozes e dos risos das mulheres sentadas junto das braseiras. Talvez sonhasse com outras noites, com outros caminhos, como se a queimadura do sol na pele e a dor da sede na garganta não passassem do começo de outro desejo.
O sono passava devagar pela cidade de Smara. Algures, a sul, na grande Hamada de pedras, não havia sono na noite. Havia o torpor do frio, quando o vento soprava na areia e punha a nu o soco das montanhas. Não se podia dormir nos caminhos do deserto. vivia-se, morria-se, olhando sempre com os olhos fixos queimados pela fadiga e pela luz. Por vezes os homens azuis encontravam um dos seus, sentado bem direito na areia, de pernas estendidas, com o corpo imóvel nos farrapos de roupa que esvoaçavam. No rosto cinzento, os olhos escuros fitavam o horizonte movediço das dunas, pois era assim que a morte o tinha surpreendido.»
[J. M. G. Le Clézio, Deserto; trad. Fernanda Botelho, Dom Quixote, 3.ª ed. Fevereiro 2009]
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