21 de dezembro de 2013

Nem sempre a lápis (464)

Memória descritiva
Manuscrito
Quando disse que tinha conseguido passar tudo a limpo, a Olga perguntou-me pelos manuscritos.
Deduzi que se referia aos cadernos diários escritos com marcadores a cores, e disse-lhe que já os tinha deitado fora há muito tempo.
Acredito que ela possa ter alguns guardados, para não dizer, escondidos da minha indiferença destruidora.
Mesmo assim, perguntou-me com uma tristeza mal disfarçada:
- Então não tens manuscritos?
É verdade, não tenho manuscritos.
Na adolescência, aguardava o fim-de-semana para dactilografar no escritório do meu pai, aplicando-me a paginar e a colar cadernos de poemas.
Mais tarde vim a herdar a velha Hermes 2000 do meu avô, que conservo como um caderno em branco, e passei a escrever directamente à máquina.
Não só resolvi a acusação de ter uma letra feia, como o problema de a decifrar mais tarde.
Quando os computadores surgiram nas redacções dos jornais, guardei resmas de linguados de papel pardo, convencido que resistiria ao fascínio dos sucessivos processadores de texto que tenho utilizado.
Comecei a acumular dezenas de versões, guardadas em disquetes e impressas em folhas, que acabo por me esquecer dentro de pastas.
Raras vezes comparo as versões e, inconscientemente, julgo ter contribuído também para a morte do manuscrito.
No entanto, apesar de ver que o meu filho só lê CD’s e que as próprias editoras se multiplicam em esforços de actualização, ainda me custa a aceitar a inevitável morte do livro.
Esse objecto que me possui e completa, tanto no bolso do casaco, como para o repouso do olhar.

Sem comentários: