«Os acontecimentos realmente importantes que surgem inevitavelmente das ligações da natureza humana, nunca despertam tanto assombro e desnorteamento como a tensão emocional causada pelo presságio e pela expectativa. A realidade está aqui, logo veremos: foi isso que pensámos e por isso nos mantivemos em silêncio. Ninguém estava excitado ou tentava imaginar as circunstâncias da tragédia. E creio que não estava enganado ao supor que, naqueles momentos, os meus companheiros sentiam o mesmo alívio que eu: horror e alívio, como se, por fim, tudo o que tinha acontecido antes fizesse sentido. Como se fôssemos aliados para que este momento se tornasse realidade, algo que já tinha sentido antes e também mais tarde: a cumplicidade de culpabilidade entre pessoas no momento de um grande perigo.
Z. parou em frente da porta com varanda. Inclinou-se na direcção da maçaneta e pôs-se à escuta. Nós não ouvimos nada, mas compreendemos logo que Z. ouvia os ruídos de uma outra forma, tinha um tipo de “ouvido” diferente do dos caçadores melómanos. Onde nós, sem um talento especial para a música, não captávamos nenhum som, a sua audição delicada, mesmo através da porta, percebeu o pianíssimo da agonia. Permanecia em frente da porta tranquilamente e com um interesse objectivo que caracteriza os peritos, ligeiramente curvado, mais ou menos como se um maestro se inclinasse por cima de um fosso de orquestra para escutar as notas baixinhas de um instrumento que chegavam de longe. Ao cabo de uns minutos, endireitou-se, os olhos brilhavam; aqueles olhos estranhos, de luz sombria, cuja íris parecia estar coberta por uma fina camada de catarata, como se sempre olhasse para uma outra direcção, para um mundo onde a existência não se manifesta em objectos ou formas, mas em sons e ideias musicais.
- Ouvi algo há uma hora atrás – disse. – Pensei que estavam a dormir. Mas não. Um deles ainda está com vida – acrescentou com uma voz firme.»
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