11 de maio de 2013

Papiro do dia (408)

«A consciência, não o sofrimento, traz-lhe à memória milhares de ruas solitárias e abandonadas. Elas começaram a correr desde aquela noite em que estava estendido no chão quando ouviu o último passo e depois a última batida da porta (eles nem sequer apagaram as luzes), e depois ficou deitado, calmamente, de costas, com os olhos abertos enquanto por cima o globo suspenso ardia com um brilho fixo e doloroso, como a luz de uma casa onde toda a gente tivesse morrido. Não sabia há quanto tempo se encontrava ali. Não pensava de todo, nem sofria. Talvez tivesse consciência de que algures, no seu íntimo, os dois terminais desunidos dos fios da vontade e da sensibilidade, agora sem contacto, esperavam restabelecê-lo, unir-se de novo para que ele pudesse mover-se. Enquanto acabavam os seus preparativos para partirem, os outros passavam de vez em quando por cima dele, como pessoas que estando prestes a deixar uma casa para sempre passam por cima de um objecto qualquer que tencionam deixar para trás.
Depois, desapareceram: o passo final, a porta final. Depois ele ouviu o carro abafar o ruído dos insectos, pairar por cima dele, baixando depois de nível, ficando mais baixo do que o nível dos insectos, de forma que por fim ele só ouvia os insectos. Estava ali deitado por baixo da luz. Ainda não se podia mexer, do mesmo modo que podia olhar sem ver, ouvir sem ter consciência; os dois terminais ainda desunidos enquanto ele estava estirado calmamente, lambendo de vez em quando os lábios, como fazem as crianças.»
[William Faulkner, Luz em Agosto; trad. Jorge Telles de Menezes, Bibliotex, 2003;
por vezes um puro é apenas um charuto]

2 comentários:

Gabriel Pedro disse...

para consideração:

http://www.anjoinutil.blogspot.pt/2013/05/diz-que-vao-diminuir-as-actividades.html

fallorca disse...

Sempre a considerar