30 de janeiro de 2014

Nem sempre a lápis (482)

Memória descritiva
Rua
A minha rua era uma estrada, e nacional.
Delimitada por uma curva e uma ponte, obrigava-nos a olhar à esquerda e à direita, antes de nos lançarmos à conquista daquele espaço inferior a um quilómetro.
Tinha um marco azul e branco, onde se lia que a estrada era a 345, com destino fixo em Nelas, vindo da Mealhada.
Nunca nos ocorreu outro sentido que não este, em flagrante contradição com as regras da leitura.
Outros marcos mais pequenos marcavam-lhe as centenas, com o número bem gravado na superfície branca, ligeiramente biselada para facilitar a leitura dos condutores.
Era a minha rua, aquele pequeno troço da EN 345.
A partir da ponte, ou da curva que a limitava à esquerda da minha abordagem, era o Infinito.
Quando tinha acesso a um mapa, procurava logo a minha rua.
Nem todos se podiam orgulhar de ver a sua rua no mapa, e entretinha-me a imaginar o trânsito e a minha presença no emaranhado da rede viária, como uma impressão digital.
Um dia chegou a minha vez de a percorrer.
Ceder à tentação de me perder no labirinto proposto pelo mapa.
Esgotei-o depressa demais, e dei por mim junto à abstracção defendida com armas das fronteiras.
Contornei-a pelo lado mais humano, que era um caminho anónimo, paralelo à linha-férrea.
E nunca mais parei.
Nem para me voltar para trás, e ver que a minha estrada tinha desaparecido do mapa, e conquistava finalmente a dimensão de uma rua.

1 comentário:

Nico disse...

" a minha rua era uma estrada, e nacional. "

"Transcrevo-te" nestas palavras, meu amor.
Vida da minha vida.
Olhar do meu sul,
Amo-te como o vento fustiga a areia da praia que nos acolhe.
Viajante do tempo efémero.
Meu companheiro