«O mar
Muitos séculos de permanente contacto com o mar introduziram na língua portuguesa uma longa terminologia naval que passou rapidamente ao simples quotidiano.
Não se pode entrar no metropolitano porque está “à cunha”. À cunha estava o navio quando completamente aparelhado e já com os mastaréus no seu lugar. Quem, assim, perdeu o metropolitano pode também perder as estribeiras. E as estribeiras não são mais do que o ponto de apoio onde os marinheiros que trabalhavam no alto das vergas colocavam os pés. Quem perde as estribeiras, vai, fatalmente, cair ou ao mar ou ao convés, quase sempre com fatais consequências.
Estribeiras vem de estribo, como os dos cavalos, e encontramos um outro estribo no portaló de honra, no ponto de entrada a bordo das personagens principais. O bordo do estribo chamou-se estribordo inicialmente, hoje estibordo. O que se transformou numa grande confusão na marinha portuguesa (confusão apenas de lógica verbal), pois o portaló de honra, em Portugal, fica a bombordo.
Bombordo, à esquerda dos navios, quer dizer o lado bom, aquele em que se esperava (e se conseguiu) encontrar o caminho para as Índias, mas invertendo a terminologia habitual das embarcações que se limitavam a cruzar o Mediterrâneo e onde, consequentemente, bombordo era o lado de terra, sempre à direita do navio.
O mesmo sujeito que aguardava o metropolitano, sempre à cunha, deveria já “estar pelos cabelos”, o que é expressão bem intrigante. Ora, ao chegar ao porto, os navios lançavam a âncora, isto é, ferravam-na. A âncora podia ser colocada “a ferros” de maior ou menor segurança (à galega, a olho, a pé de galo, a pique). A mais insegura das posições era a de “ferro pelos cabelos” e daí que hoje se esteja pelos cabelos quando em perigo iminente de, pelo menos, perder a tramontana. (A tramontana é o lado norte do Mediterrâneo, por extensão, a Estrela Polar).
Depois de “chamar à fala” (como se fazia no alto mar para melhor identificação de um navio) o chefe da estação, o nosso homem embandeirou em arco ao saber que vinha uma próxima carruagem vazia. Fê-lo como os barcos usavam em datas festivas em que se “empavesavam”, cobrindo o convés (ou pavés) de bandeiras e panos.
Entretanto, a situação já criara grande “celeuma”, outro termo náutico lembrando as cantigas, ou a simples gritaria dos marinheiros quando alavam os cabo (que também pode dizer-se seleme, salema, saloma). O chefe da estação estava “enrascado”, também muito nauticamente. Enrascar é embaraçar cabos, velas, bandeiras numa polé, objecto náutico que iria ser precioso para o desenvolvimento dos processos da Inquisição.
Ao que parece, o homem que protestava já tinha bebido um pouco e estava um tanto “adornado”, como os navios que se inclinam com água a bordo ou com a carga mal distribuída, mas mantinha a sua indignação “a todo o pano”, e “aguentava a guinada”.
Não fosse uma daquelas mulheres facilmente “abordáveis” que o ajudou a recompor-se, tudo teria sido pior, porque o homem estava “desorientado” ou "desnorteado” (como os marinheiros a quem as nuvens não permitem ver a Estrela Polar para encontrar o Norte ou a profunda escuridão não deixa saber onde é o Oriente, onde nasce o Sol).
Se ao menos, como no Algarve, os ventos fossem constantes e se soubesse que barlavento é o sítio de onde parte o vento e sotavento aquele para onde se dirige, o nosso homem ficaria mais tranquilo.
Assim, pegou na sua tralha (no fundo, o lugar onde se amarram os cabos inúteis e que não estão a ser utilizados) e para regressar foi tomar lugar num calhambeque, tendo já totalmente esquecido que a palavra significa apenas um barco pequeno, insignificante.»
[Roby Amorim, Elucidário de Conhecimentos (quase) inúteis; 2.ª ed. revista e ampliada. Edições Salamandra, Julho 1985]
4 comentários:
Adorável! :) Beijinhos e abracinhos
Depois levas(e-lo), quando apareceres
Beejis, moça :)
Vim cá roubar.
Ladroa que rouba a ladrão e tal e coiso :)
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