7 de abril de 2011

«É bom trabalhar nas Obras» (84)

«... quando vamos chegar a Veracruz?, em menos de três dias, se fizer bom tempo, respondem;
à noite olho da coberta lá para baixo, as ondas aparecem temíveis a quebrarem-se contra o costado do barco, se tenho medo de uma sublevação quanto mais não temerei um naufrágio, inconveniente sério para alguém que tem de andar de um país para outro da América do Sul com amostras, almanaques e catálogos dos laboratórios Cunningham, e como hei-de fazê-lo senão de barco, felizmente os da Transatlântica Espanhola são os mais confortáveis e seguros do mundo;
a mesma opinião tem o casal que me calhou à mesa, uns noruegueses muito agradáveis, embora não demasiado conversadores, como não sei francês e eles falam um inglês britânico e quase nada de espanhol, só posso mencionar-lhes as obras de Ibsen que vi na Broadway, Espectros e A Casa das Bonecas, e perguntar-lhes se a sua capital, Cristiania, é tão gélida como São Petersburgo, sei um pouco acerca dela, Dav, meu vizinho na Calle 55, é um exilado inimigo do acaso;
o nome do barco parece incompreensível aos noruegueses, graças a ter lido um romance de Galdós faço um brilharete, digo-lhes, Churruca foi o almirante espanhol que, em 1805, perdeu a batalha de Trafalgar contra Horatio Nelson, uma bala de canhão arrancou-lhe uma perna, Churruca continuou a dirigir as suas naves com o corpo metido num barril de farinha para estancar a hemorragia, esvaiu-se em sangue mas morreu de pé como um herói, eu se me visse assim dava-me um balázio, por incrível que pareça, por sua vez o almirante Nelson acabou por morrer a bordo do Victory, para evitar a corrupção o seu cadáver foi levado para Inglaterra num barril de brandy, houve um excesso de tonéis em Trafalgar, os senhores não acham?;
ninguém se ri, conversa acabada, não há mais temas de interesse comum, teria preferido jantar com gente do meu idioma ou norte-americanos, para mim é igual, falo como eles, vivo em Manhattan desde criança, o meu pai foi mais uma vítima de Porfirio Díaz, quando se deu a rebelião de 1879, mas fui o último a chegar e não me devo queixar, foi uma sorte encontrar passagem nestas condições;»
[José Emilio Pacheco, O princípio do prazer; em tradução para a Colecção Ovelha Negra / Oficina do Livro;

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