9 de abril de 2011

Nem sempre a lápis (149)

Hoje não trabalho, vou-me deixar ficar só a curtir e a descansar. É domingo e acordei às duas e tal da tarde. Quando saí de casa, senti-me empurrado pelo desfile de um festival de bandas de música até ao fim da vila. Tomei o pequeno-almoço onde antes ficava o olival e as terras de cultivo ao lado da igreja – naturalmente empoleirada em cima da várzea – e, quase sem dar por isso, desatei a caminhar em direcção ao rio, como se voltasse para casa depois da escola, com um casaquinho de malha cinzento claro e uma indestrutível pasta de couro na mão. Não há canto possível que permita identificar e retomar esse longínquo percurso: a curva e a ponte, fronteiras do meu território infantil, foram substituídas por uma rotunda que engoliu a barroca, onde molhava os pés numa vala que até passava por baixo de casa; a serração de madeira transformou-se num alvo indefeso apedrejado pelo abandono; o marco da estrada, amparei ali pela primeira vez a morte nos meus braços adolescentes e incrédulos, foi actualizado por uma placa que converteu a Estrada Nacional em Rua da Caniveta; a escada, onde uma amiga chateada me despertou com um safanão, que partiu um vaso à mãe que não deixou as filhas virem brincar connosco, agora esconde-se envergonhada atrás da vegetação galopante e vingativa, «benfeita…» Vim ter ao incansável rio onde acabámos por aprender a nadar, depois de engolirmos muitos pirolitos; as mulheres lavavam a roupa que punham a secar nas silveiras carregadas de amoras, mas enxotavam-nos a rir quando lavavam roupa menstruada; esqueci o meu primeiro relógio no pulso de uma videira, para ir nadar; vi pela primeira vez um cão morto, inchado e a ser devorado por uma segunda pele de vermes; vi, também pela primeira vez, um verdilhão rasar a água com um chilreio repenicado e trocista, uma lontra esgueirar-se por entre as raízes submersas dos freixos e salgueiros; rio, onde, há quase cinquenta e nove anos, o meu pai teve de ir a correr apanhar uns peixes minúsculos para a minha mãe «matar os desejos» e eu me decidir a nascer. Transformaram as abandonadas margens do rio numa agradável praia fluvial, com percursos por entre a relva e mesas com bancos de pedra à sombra dos abetos e freixos, sentado a escrever, de frente para o Sol e de costas para a ponte do comboio e o Cabeço do Senhor do Mundo, enquanto vejo a minha mãe cada vez mais encantada com a corte que o doutor Alzheimer lhe fez. Há dias, encontrei a melhor amiga da minha infância e adolescência; não a via há mais de vinte anos. Fez-me uma surpresa: abriu os cordões à bolsa e, num passe maroto, mostrou-me uma foto de grupo do colégio, talvez tirada em mil e novecentos e sessenta e cinco ou sessenta e seis. E, à medida que me ajudava a identificar este ou aquele rosto, ia-me contando como a morte prematura, a natural separação e a previsível fuga, foram estilhaçando a foto amarelecida que segurávamos comovidos com o reencontro, donde sabemos que também já nos ausentámos.

2 comentários:

MCS disse...

Belo texto.

fallorca disse...

Obrigado. Foi o começo dos «Blues» (a entrada em "estúdio", eheh) e os "temas" andam por aí, com o cuidado & etc.