11 de abril de 2011

Nem sempre a lápis (150)

Termino o rascunho de O princípio do prazer em simultâneo com A Linha de Sombra. E é precisamente nela que me encontro, uma vez mais. Terminei a tradução contrariado: nem a folga que me proponho para a começar a ler e a trabalhar, nem A Tábua das Marés que aguarda na pilha ao lado da cama, me animam o suficiente. Na sexta-feira, movido por um impulso aproximei-me da mesa onde almoçavam dois funcionários de uma imobiliária, e à noite já tinha a casa leiloada na Net, com fotos e tudo para que não houvessem dúvidas. Não discuto a técnica nem a qualidade; simplesmente, não têm nada a ver com as que tirei para aconchegar anotações no blogue. É muito possível que não acabe aqui o ano; que volte a esperar por Setembro, pelo fim das férias, para regressar a Lisboa. Recorrendo ao justificável argumento da sobrecarga orçamental, decidi pô-la à venda e alugar uma casa em Lisboa; não para comprar outra mais pequena, em Carnaxide. Não é preciso, já cá estou quase há três anos; hoje, decorridos quase trinta e cinco, nem os que passei no Algarve parecem interrupção. Resta-me esperar que a regressão não me conduza ao circuito dos quartos alugados; com serventia de cozinha, a conceder-se ainda o privilégio, a mordomia. Deixo a conclusão aos cuidados da delegação vienense, apaniguados & detractores associados. Vim para aqui viver em Dezembro de 1976; semanas antes, José Henrique Santos Barros e Ivone Chinita abriram a porta para mostrar a casa. Nunca nos tínhamos visto e nunca mais nos voltámos a ver. Conhecíamo-nos dos suplementos dos jornais. Ele dirigia ou coordenava um no jornal açoriano patriarcal e mais reaccionário que se possa imaginar, A União, onde colaboravam David Mestre, Rui Knopfli, entre outros representantes da poética que lavrava o vasto Império, no estertor dos anos 70. Lamento, apenas em termos de rigor, já não ter esses exemplares e a correspondência trocada; o mesmo sucederá aos objectos, aos rastos curriculares que vão aqui ficar com várias gerações de pacíficos fantasmas, senis. Só concebo a mudança como forma de aligeirar, depurar; polimento até o gesto ficar supenso no ar. Esta tarde, quando fechei a porta depois de a abrir a uma interessada, encaixei a estocada; já aqui não vivo, sou a pessoa que mostra a casa. Entre copiar excertos para o blogue e arrumar o livro, dei-me com ele na mão; parado e desnecessário o cuidado: «A vida era para ele um favor… – aquela sua vida precária e penosa… – e ele sentia-se totalmente aterrorizado consigo próprio.» Como há três anos, vou atender interessados e aguardar por Maio para seguir A Tábua das Marés: «A barca desliza pela água com extrema suavidade. De tanto pensar a água, de puro norte, a barca está desorientada.»

5 comentários:

margarete disse...

37 anos, 10 casas, 6 aldeias/cidades, 2 países, sempre com a tralha às costas e nunca me solucionei nesta coisa dos sítios, sei apenas que tenho tido relações intensas com as casas por onde tenho passado

no livro "A criança no tempo" de Ian McEwan há uma passagem lindíssima acerca da cama e pensei que, de facto, a casa onde vivi mais tempo foi a cama que possuo actualmente, tem 12 anos :)

fallorca disse...

Belo inventário :)

ana disse...

Boa noite...

Existem coisas na vida muito estranhas! A SUA CASA aparentemente foi a minha primeira casa no "continente", sou a filha da Ivone e do José Henrique... Sensação estranha... já a vendeu? Estou a procura de casa por coincidência...

Ana Barros

ana disse...

email

fallorca disse...

Olá, Ana,
há coincidências comoventes.
Lembro-me perfeitamente de duas crianças (gémeas?), e soube mais tarde do resto...
Já não vendo a casa; faz parte de mim. Mas terei todo o gosto em vos mostrar a casa - aqui parece um capítulo de «A Casa da Louca» - se tiver curiosidade em ver «a minha primeira casa no "continente"».
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